Minha primeira profissão, iniciada aos 17 anos, foi o jornalismo, motivo de grande orgulho. No meu tempo, não havia escola de comunicação, a gente se formava no tapa mesmo. Não sou diplomado, mas tenho a carteira do Ministério do Trabalho, velhusca porém digna, onde meu registro profissional é consignado. E uma das coisas que a gente logo aprende é que a convivência da imprensa com o poder é problemática. O poder, principalmente em países de tradição autoritária como o nosso (é isto mesmo o que estou dizendo), é muito melindroso quanto a qualquer crítica feita pela imprensa e, por ser amiúde corrupto ou delinqüente, costuma não ter grande apreço por uma imprensa livre.
O governo atual vem tendo problemas com a imprensa, como se sabe. O ministro Gushiken, pelo menos para alguns, chegou a deixar claro que imprensa boa é imprensa a favor e quem não colabora é desleal. Eu, que não tenho rabo preso, não cultivo apego religioso a político nenhum e reclamo e critico porque, como milhões de outros brasileiros, não estou satisfeito com o governo que elegemos, sou desses desleais. Não me sinto desleal a nada, mas é como acho que ele vê meu tipo de jornalista e aí não há o que fazer, pois cada um pensa como quer, direito que insisto em defender, aparentemente ao contrário de muita gente no governo.
O presidente da República disse em algum lugar (só tenho certeza de que não foi em Brasília, porque lá ele nunca está) que os jornalistas são covardes. Como fizeram outros, vou dar uma respostinha. Mas antes tenho de repetir o que muitas pessoas consideram imperativo, sempre que um jornalista toca neste assunto: sim, a imprensa comete erros, tem maus elementos, perpetra abusos e, certamente, conta com uma parcela de covardes mais ou menos equivalente à de outras categorias profissionais etc. etc. Cumprido o ritual e assim, com fé em Deus, evitada a carta de protesto de um leitor ultrajado, digo que não entendi direito por que somos covardes, do mesmo jeito que não entendi a deslealdade. Todos os dias, jornalistas morrem no exercício da profissão, são encarcerados, espancados, vilipendiados, patrulhados, caluniados e censurados. Sem a colaboração desses covardes, mais por adesão moral a princípios do que por outros interesses, o presidente mesmo poderia estar em situação bem diferente da de hoje. E os covardes, ao que parece, estão metendo medo no valente governo, que agora almeja “orientar”, “disciplinar” e “fiscalizar” a imprensa, embora diga que não.
Ia escrever com bastante indignação, mas aí, como na semana passada, me acalmaram novamente. Eu de fato ando ranzinza demais, onde já se viu. Ele estava brincando, ele é brincalhão. Vamos esfriar a cabeça e pôr as coisas no devido lugar. Era um chiste, um gracejo. Assim como foi um chiste sua observação de que tinha ido ao Gabão para ver como é que um sujeito permanece no poder por 37 anos e ainda vai reeleger-se. Claro que foi brincadeira e devemos até ser gratos por termos um presidente que, como se dizia no nosso tempo de menino, é um “número”, impagável mesmo.
E que é que eu queria, ir novamente contra a realidade brasileira, com minhas besteiras habituais? Pensasse eu no cidadão comum, da classe média para baixo. Aflição do aumento do condomínio à fila no INSS, bala perdida, plano de saúde, aposentadoria descontada, seqüestro relâmpago, cheque especial vencido, filas em toda parte, esse rosário interminável, enfim. Agora imagine: de repente não existe mais nenhum desses problemas, nenhum mesmo, nunca mais vai existir, nada do que possa acontecer vai me prejudicar, a não ser uma hecatombe. Minha vida está arrumada, sob todos os aspectos possíveis. Trabalho chato, nunca; só mesmo o que eu gosto de fazer. Tudo do bom e do melhor. E todo mundo em torno concordando, elogiando e aplaudindo. Nunca mais a perspectiva de nada a não ser de primeira classe, nenhum, nenhum, mas nenhum mesmo dos problemas do cotidiano de pessoas comuns. Ia ter gente que nem conseguiria se acostumar à idéia ou à nova vida.
Mas ele se acostumou, e é natural. Que queria eu? É fácil julgar os outros, mas pusesse-me eu no lugar dele, bem no lugar dele e veja se não estaria agindo da mesma forma, ou até mais entusiasticamente. O camarada nasce muito pobre, não estuda, não tem perspectivas, mas, através de enorme talento, vai ver gênio, vira um líder de proporções fenomenais e deu no que deu. Eu vou negar que ele se fez magistralmente, dando uma aula de craque sobre como é que se chega lá? Claro, nem todo mundo vai ser presidente, mas sempre dá para arrumar a vida, a dele já está arrumada, o exemplo não pode ser mais visível. E sem roubar nada, o que ainda realça mais a proeza!
Argumentei que isso está longe de ser suficiente para deixá-lo feliz, pois o país enfrenta problemas gravíssimos, que com toda a certeza o angustiam. Sim, sem dúvida, mas a ocupação ajuda a esquecer os problemas e ele se entretém em muitos afazeres que lhe tomam o tempo. Para não falar que, do ponto de vista dele, nada vai tão mal, pelo contrário. Ou eu achava que o procuravam para criticar ou dar más notícias? Claro que não, dão é a medida provisória para assinar, o discurso sobre questões com que ele não tem familiaridade e a chance para o exercício de sua simpatia em público. Ele já tem uma pequena aposentadoria isenta de imposto de renda (mas de rico, segundo critérios do próprio governo), terá a pensão de ex-presidente, direito a honorários elevados por palestras depois (ou “se”, conforme o resultado da lição africana) de deixar o poder e muito mais. Agora, se pudesse, respondesse eu à pergunta: quantos neste país podem gabar-se de situação parecida? Cada um procura suas melhoras e, se todo mundo, em vez de ficar se queixando, fosse à luta como ele, não estaríamos neste atraso.
O Globo (Rio de Janeiro - RJ) 29/08/2004