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Relatório de viagem

 

Desta vez fui de férias mesmo e não mandei despachos sobre acontecimentos em Itaparica, pérola do Recôncavo Baiano onde tive a felicidade de ver a luz pela primeira vez e terra sempre na vanguarda dos interesses nacionais, desde o tempo em que os holandeses andaram se metendo a bestas por lá. Ficaram praticamente todo o ano de 1648, mas padre Vieira, que só por acaso não nasceu na ilha, tanto chamou Santo Antônio às falas que o santo - cala-te boca, mas ele recebia soldo dos militares portugueses e deu moleza para os holandeses muito tempo, tanto assim que chegou até a ser rebaixado por levar grana sem cumprir a obrigação - resolveu se mexer e aí os holandeses foram corridos no tapa e às pressas, deixando para trás quem não estava na praia na hora. Há quem atribua a esse fato a existência de tipos raciais tão variados na ilha, a ponto de Zé Pretinho, que, como a alcunha indica é altamente afro-descendente, haver descoberto, depois de uns sessenta e poucos anos, que tem olhos azuis. Estive com ele no Mercado logo no meu primeiro dia para trocar as saudações de praxe e ele estava muito satisfeito com a novidade.


- Eu sou lindo - me confidenciou, num intervalo de nossas considerações sobre o tempo, à beira da rampa. - Negro de olho azul, raceado com holandês. Quantos você conhece?


- Bem, assim de cabeça tem aquele menino do Bar de Espanha, tem...


- Mas o mais preto sou eu! Pergunte a qualquer um aí, de todos aqui da ilha o mais preto sou eu! É porque Deus não dá asa a cobra, mas, se eu fosse rapazote hoje em dia, estava com meu futuro garantido. Só de gringa querendo tirar raça comigo, ia ser um acabamento. Já pensou? Negão fofinho legítimo, cheiroso, sem barriga e de olho azul, eu não ia dar vencimento, com essas gringas taradas que vêm aqui doidas para papar um negão. Agora que eu já estou com 34 netos é que chega essa moda, Deus não dá asa a cobra mesmo. Eu, lindo assim...


Não tive coragem de contrapor minha opinião um pouco menos entusiástica sobre a beleza física dele, bem como o fato de que ele estava apoiando o turismo sexual, que só é visto do lado masculino, mas ele tem razão, é bastante praticado hoje em dia pelo lado feminino, tanto assim que camisetas com os dizeres “Negão Legítimo” são usadas por muitos negões falsos. Se a demanda das gringas não fosse tão robusta, a ponto de dispensar cotas, ia ser uma confusão. Deixei Pretinho em seus justos devaneios e fui cumprir minhas outras obrigações sociais no Mercado, que são muitas, tanto assim que só no dia seguinte pude fazer um reconhecimento da situação local sob outros aspectos que não os aludidos.


A ilha, como sempre, está sintonizada com as tendências nacionais e revela mais uma vez sua criatividade e capacidade inovadora. Não adotamos o mensalão em sua forma federal, mas a prática não passou despercebida e, em meu quarto ou quinto dia, um certo dono de restaurante, cujo nome não menciono porque ainda não recebi o primeiro pagamento, me fez uma proposta cuidadosamente apresentada. Perguntou-me se eu não podia, de vez em quando, citar o nome do estabelecimento dele no jornal.


- Não precisa ser tipo “não deixe de freqüentar o restaurante Tal e Tal”, não é esse tipo de propaganda. Mas assim, falar aqui da casa de vez em quando, dar uma colherzinha-de-chá. Pode deixar que sua parte já está prevista, é o mesmo esquema.


- Mesmo esquema? Que mesmo esquema?


- Ora, o mesmo esquema. Todo mundo já sabe. Você já está comprometido? Eu cubro qualquer oferta.


- Comprometido como?


- Comprometido, comprometido, todo mundo faz, vai me dizer que você não sabe?


Eu não sabia, mas acabei sabendo, não sem alguma dificuldade. Trata-se de um esquema algo nebuloso, que não envolve dinheiro propriamente dito, porque o fluxo de caixa dos restaurantes da ilha não é assim esses PTs todos. Para não encompridar muito: foi instituído o moquecão, mediante cujo consumo regular o beneficiário se compromete a prestar algum serviço de relevância. No meu caso, muni-me de cautelas. Exigi variedades de moqueca três vezes por semana, fiz questão de saber todos os pormenores do dendeduto e me assegurei de que minhas moquecas não serão contabilizadas, embora nunca classificadas de moqueca dois. Sei que vocês podem pensar que é mentira e podem mesmo, porque, se denunciado, negarei e repelirei tudo cabalmente, além de afirmar desconhecer o significado da palavra “moqueca”, não pensem que também não tenho aprendido nada com os profissionais.


Até em áreas completamente inesperadas, o clima moral da República se reflete. Depois de uma semana de estada, observei que Agnaldo, o sabiá que reside na mangueira, juntamente com diversos familiares e aderentes, não cantava mais. Continua a morar na mangueira, mas não canta. No começo, cheguei a pensar no pior, mas ele apareceu com a costumeira falta de cerimônia, para passear no chão junto à varanda e bem perto de mim. Não consegui atinar a razão para seu silêncio e somente a sabedoria de meu amigo Toinho Sabacu me esclareceu.


- Esse sabiá não parou de cantar - disse ele. - Só não canta mais aqui.


- Ué, e por quê?


- Ele agora só canta com jabá - disse Toinho, meio constrangido.


 


O Globo (Rio de Janeiro) 19/2/2006