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A reforma universitária pede passagem

 

O segundo texto da Proposta Universitária, antes de qualquer discussão do seu impacto, marca uma definitiva inovação em nossa cultura política. Não temos precedente de uma busca tão profunda das opiniões, discordâncias, teses de fundo, a criar um contraditório deste porte no debate brasileiro. O crédito vai logo, e todo, ao ministro Tarso Genro que tanto recebe, finalmente, a nova versão, tanto não tranca também a busca da última proposta, antes de começar o debate no Congresso Nacional. E a profundidade das trocas de ponto de vista só fez, por outro lado, reforçar o constitutivo essencialmente dialogante do modo de ser do atual situacionismo brasileiro.


A importância da mobilização para o tema nesses últimos meses torna inamovível o precedente para outras iniciativas que venham a definir o perfil do atuar frente ao Estado e à Sociedade em que se consolida o Governo Lula. De logo se evidencia, na nova redação, o esvaziamento da maioria dos óbices constitucionais em que se entravava a reforma, frente ao regime instituído da educação brasileira e as impaciências ideológicas do PT, no seu propósito de mudança. Mesmo porque, no domínio, mesmo, da justiça social, e nas garantias de acesso do Brasil dos destituídos ao ensino universitário, a sistemática do Prouni, e a política de quotas, já respondiam às expectativas do país de fundo com a generalização possível do ensino brasileiro.


Por força se questionará a urgência do deslanche efetivo de um novo corte universitário, frente aos empenhos do primeiro acesso à escola e à educação de base. Mas o reclamo pelo ensino superior se impõe atentando-se a que, na presente geração, perdurava um milhão sobre 4 milhões e 800 possíveis estudantes universitários fora do "campus", impossibilitados de pagar a universidade privada, ou de forçar as vagas no ensino público.


A primeira revisão da reforma já se dá conta da situação, de fato, sobre a ideal da utopia pública do PT, a compreender o quanto 80% do ensino superior hoje escapa das facilidades do Estado oferecidas ao nosso estudante. No eixo da mudança do governo Lula soma-se à decidida tentativa de mudar esse estado de coisas de maneira a, até 2020, conseguir-se uma isonomia de oferta entre as duas áreas do ensino superior no país. Mas desde já o governo melhorará a capacidade do Estado, acabando com o escândalo da universidade que não se abra à noite, e cristaliza a modorra do professorado, antigo privilégio do nosso mandarinato corporativo.


De qualquer forma, o projeto não deixa de reconhecer, ainda, com dificuldade, o imperativo constitucional de que a educação não é tarefa só do Estado, mas, também, da família, e que a característica social desta atividade é congênita à sua prestação. Não depende de que o poder público a reconheça ou convalide o concurso da família e da sociedade no ensino nacional. Teimosamente o projeto insiste no caráter de bem público da educação, como se sugerisse, implicitamente, estivéssemos diante de um serviço público, a ser oferecido mediante concessão, ao alvedrio e à estrita municidência do Governo.


O presente artigo 2O evidencia o viés e fica, ainda, como uma das barreiras à conciliação entre a reforma e o nosso Estado de Direito. Tal como, ainda a violar a Carta, permanece o intento de generalizar-se a idéia de gestão "democrática" ao "campus" privado, quando o constituinte de 88 limitou expressamente à universidade pública à presença do sistema de administração direta, até com a intervenção externa e popular na sua administração.


Se a Carta não pode ser violada nos regimes precisos, de obrigações e de deveres, que instituiu para a área estatal e privada, nada impediria, entretanto, naquilo que é estrita faculdade do poder do Estado abrir-se a uma política de pesquisa, que favorecesse ambos os prestadores da educação superior. Com efeito, a Carta só cria a obrigação de apoio à pesquisa na área pública. Esta atividade matriz para o avanço universitário tornou-se praticamente nominal no "campus" privado, sufocado pelas restrições das mensalidades. Mas, pela primeira vez, na nova redação do projeto, as universidades comunitárias são bafejadas por esse aporte tão decisivo para a verdadeira e decisiva mudança do perfil qualitativo da educação brasileira. Fica ainda a meio passo este aporte de recursos para o setor decisivo que fará a diferença nos imediatos resultados do ambicioso propósito do Governo.


Também não aproveitou o ministério a iniciativa para alterar, ainda, a "lei do calote", que favorece a inadimplência, por todo o semestre, do pagamento das mensalidades, mantendo um déficit contumaz dos estabelecimentos de ensino, a mal poderem atender ao estrito pagamento de seu professorado. A medida não se sustenta após a ampla e nova proteção garantida pelo Prouni ao verdadeiro carente. Só beneficia o mal pagador contumaz.


A largueza do debate de toda forma já como que transformou em exceção os pontos negativos e permite um somatório no respeito à efetiva autonomia universitária na dimensão, pública como privada, para uma competição democrática pela qualidade. O desarme das cautelas ideológicas avançaram mais do que o previsto, inclusive, no reconhecimento do sentido empresarial amplo que pode revestir o ensino privado. Mas nada é dito sobre o estímulo às diferenças de regime de ensino e de criatividade de suas propostas.


O Ministério da Educação já respondeu às urgências sociais do "campus" brasileiro. Mas apenas começa a ir adiante da velha obsessão de associar a melhoria do ensino à padronização e aos controles. A inventiva espera a sua vez, por sobre a férula fiscalizadora, nas boas surpresas em que a reforma pede passagem.




Jornal do Commercio (Rio de Janeiro) 10/06/2005

Jornal do Commercio (Rio de Janeiro), 10/06/2005