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A reforma que não reforma

 

Estamos em plena discussão a respeito da reforma universitária, o que é democraticamente saudável. Há quem manifeste estranheza diante da proposta do MEC, apresentada pelo ministro Tarso Genro, no dia 6 de dezembro de 2004. Talvez ela não fosse necessária, bastando os instrumentos legais hoje existentes, especialmente a Constituição e a LDB.


A simples verificação de que houve quatro decretos e 15 portarias, no ano de 2004, oriundos do MEC, praticamente responde à dúvida: com esse rondó pedagógico o melhor talvez seja consolidar tudo em uma nova lei, mas elaborada com os cuidados devidos. Por exemplo: respeitar a Constituição é a primeira e mais louvável das preocupações. No afã de modernizar o ensino superior, retirando-o da influência do neoliberalismo, não há como defender o seu giro em direção a um populismo condenável, expresso na prática exagerada do participacionismo.


O MEC pede sugestões, mas não pode se aborrecer quando elas são dadas. Ninguém quer impor nada, apenas participar deste momento da educação brasileira. Darcy Ribeiro conduziu a construção da lei 9.394/96, que criou os Institutos Superiores de Educação. Foi aplaudido de norte a sul. Seria o resgate da antiga e saudosa Escola Normal.


Oito anos depois da implementação da LDB, o MEC (o mesmo MEC) oferece à comunidade um anteprojeto em que o ISE não mais existe. Essas idas e vindas quebram a credibilidade do sistema, mostram insegurança na condução dos nossos caminhos, deixam tontos os educadores que confiam na orientação oficial. Que justificativa poderá ser apresentada, se nem houve tempo para experimentar?


Com a pletora de medidas provisórias (uma das quais criou o Prouni), decretos e portarias, além dos pareceres nem sempre respeitados do Conselho Nacional de Educação, temos feito, na verdade, uma reforma universitária fragmentada, aos pedaços, quase caótica. Não é a opinião de um curioso, mas de quem conhece a universidade pública por dentro, depois de um convívio de quase meio século, como aluno, dirigente estudantil, membro do conselho universitário, professor titular concursado, diretor de centro setorial e até vice-chanceler. Nunca se viveu um ambiente assim conturbado, de resultados pífios.


Um grupo de trabalho, constituído pela Confederação Nacional do Comércio, empresta a sua colaboração, partindo de premissas essenciais. A primeira delas é que o anteprojeto é inconstitucional, entre outras razões porque discrimina a livre iniciativa. Cumprir as normas gerais da educação nacional não elimina o que tem sido na prática uma cláusula pétrea.


No artigo 3º há metas -e com prazo fixo- que, em leis, têm sido sempre desrespeitadas. Já houve prazo para erradicar o analfabetismo, para baixar percentuais de recursos utilizados em educação superior, tudo sem nenhum efeito. Aliás, o texto não explicita de onde virão os recursos financeiros para aumentar a quantidade de vagas, pagar melhor aos professores e abastecer os laboratórios que hoje mais parecem obras de ficção. Sem dinheiro, qual é o milagre?


Se o Estado é soberano, como entendemos, como se justifica a tentativa federal de sucessivas intervenções? Essa confusão é parte da invasão proposta pelo anteprojeto, e deve ser contida. Nas entidades privadas não cabe interferência do poder público, de forma ostensiva, sobretudo no que se refere às formas de gestão. Se isso não ocorre em outras atividades da vida nacional, não vemos como defender as amarras propostas para o setor educacional.


Há o cuidado de explicitar melhor as "universidades especializadas", o que é saudável, mas o que serão os "cursos especializados por campo do saber" só Deus sabe. Não há grande vantagem no engessamento da duração dos cursos de graduação, e deve ser mais estudada a questão da autonomia suspensa dos centros universitários, que foi criada pela antiga direção do MEC (gestão Paulo Renato). Isso faz parte do drama das descontinuidades, que infelicita a nossa educação.


Os artigos 14, 17, 32, 38, 39, 48 e 72 são nitidamente inconstitucionais, apesar do desejo de interpretá-los como avanços. Provocarão um festival de ações na Justiça, provavelmente paralisando o sistema nacional de educação, no seu fluxo natural.


Em síntese, operando com toda boa vontade, na análise dos cem artigos propostos pelo anteprojeto oficial, não há como deixar de apresentar essas ressalvas, a que se pode agregar outras, como o incrível artigo 41, que prevê o percentual de 75% do orçamento do MEC para manutenção e desenvolvimento do ensino superior. Um absurdo que certamente jamais será cumprido, em virtude das obrigações oficiais com a educação básica, agora ampliadas com a absorção da educação infantil. Ainda há tempo para melhorar esse documento, com as luzes da razão. Como está, não reforma, complica. E talvez seja até inoportuno.


 


Folha de São Paulo (São Paulo) 01/02/2005

Folha de São Paulo (São Paulo), 01/02/2005