Para abordar o tema, que é recorrente, na cultura brasileira, vale a pena recordar de início um instigante pensamento do escritor mexicano Octavio Paz: “Quando um país se corrompe, a primeira coisa que se degrada é a linguagem.”
Não sei se já chegamos a esse ponto. Há sinais de degradação na língua portuguesa, hoje confusa e com limites imprecisos entre a norma culta e a linguagem popular, o que a torna mais difícil de apreensão. Ser moderno, nas camadas de cima da sociedade brasileira, não é só se vestir como recomendam filmes, revistas e programas de televisão, mas também falar algo que se parece com o inglês, hoje primeira língua de 500 milhões de pessoas. Não custa insistir na barbaridade que é o batismo profano de pontos comerciais na Barra da Tijuca, onde se desenvolve uma verdadeira olimpíada de mau gosto, com nomes que nada têm a ver com a nossa cultura. Se já chegamos a imitar Miami, certamente estamos num caminho condenável. A sorte é que ainda insistimos em apreciar Caetano Veloso, Chico Buarque, Martinho da Vila e Noca da Portela, para lembrar alguns dos que, teimosamente, se encontram na ativa de uma ação cultural eficaz.
Vez por outra, aborda-se o fenômeno da francofonia. São 170 milhões de falantes. O governo francês dá sinais de que tem interesse estratégico pela latinidade. Aos nossos ouvidos chegam apenas rumores, sem maior consistência. A lusofonia tem o seu espaço. É lembrada com mais constância, como acaba de acontecer com a visita do presidente Lula a São Tomé e Príncipe e Cabo Verde. Desculpou umas dívidas, o que prova que não somos tão pobres assim, e prometeu ativar nossas relações, com a remessa de kits culturais e especialistas em ensino superior. Impor a Cabo Verde o discutível modelo brasileiro de ensino superior é maldade indesculpável. Ou o que se deseja é testar, em Praia, com professores da Universidade de Brasília e da Universidade Federal do Ceará, uma universidade moderna, renovada, crítica, aberta para o mundo, como ainda não temos entre nós? Haverá também o emprego inteligente da educação à distância.
Falou-se na ampliação dos laços que nos ligam à Comunidade dos Povos de Língua Portuguesa (CLP). Isso é dito em ondas sucessivas, como aconteceu ainda recentemente com a independência do Timor Leste, que sofre hoje uma incrível pressão da Austrália para deixar o português de lado. A língua é oficial, mas falada por menos de 4% da população, índice que não está muito longe do que acontece com Moçambique, nação oficialmente integrada à Comunidade Britânica. Há muito o que ser feito para reforço urgente da nossa comunidade, que não sobreviverá se for mantida apenas por belos poemas e discursos.
Com a visita oficial de Lula, reacendeu-se a velha questão do Acordo Ortográfico de Unificação da Língua Portuguesa, sonho frustrado do inesquecível acadêmico Antônio Houaiss, quase realizado em 1990, com a grande ajuda do senador José Sarney. Foi um movimento que contou com o entusiasmo da Academia Brasileira de Letras, especialmente dos imortais Austregésilo de Athayde e Josué Montello. Parou quando somente três parlamentos aprovaram o documento que representava a alteração de 3% dos 350 mil verbetes registrados no Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa. Já se vê que não seria muito. Outros países, além de Portugal, Brasil e Cabo Verde, não subscreveram o Acordo - e ele deixou de ser implementado. A causa pode também ser encontrada em guerras civis que então povoavam a comunidade lusófona, das quais a mais sangrenta foi certamente a de Angola.
Passou-se o tempo, as coisas foram se complicando e as propostas de maiores alterações ganharam corpo, como foi o caso do terrível hífen. Havia 18 modificações propostas, hoje são 25. E vem a discussão sobre a fonética, como esclarece o filólogo Evanildo Bechara: “Os portugueses querem que se mantenha o c na palavra ‘director’ para que se possa abrir a acentuação tônica na vogal seguinte.” As falas ficarão com pronúncias distintas, aliás, como sempre aconteceu.
A ciência da computação, por uma questão de pressa e economicidade, pede essa unificação. Ganhariam sobretudo as comunidades mais pobres, com tiragens maiores de livros imprescindíveis, hoje muito caros. Mas a resistência é grande, como aconteceu com aquele jornalista de Lisboa que colocou na manchete do seu periódico: “Querem assassinar o português.” Não é bem essa a intenção, mas fica provado que nenhuma revolução se faz sem dor. Descomplicando, politicamente, as relações entre os nossos povos respectivos, chegaremos mais facilmente à desejada unificação ortográfica. Esse é o fato. Ou facto?
O Globo (Rio de Janeiro - RJ) 12/08/2004