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Que tal uma tolerância zero para nós?

 

Sei que não adianta, mas reitero minha rejeição ao rótulo de “formador de opinião” que a toda hora me pespegam. Não só o acho pretensioso, como não creio que seja verdade. O que acredito que faço com alguma freqüência é dar forma ao que muita gente já vinha pensando, ou veicular o que ela já trazia formadinho na cabeça e não tinha como manifestar. Não sou megalômano, para achar que, depois que dou um palpite - que, aliás, pode ser uma perfeita besteira, pois claro que digo besteiras como todo mundo, embora talvez não tão abundantemente quanto uns e outros, pelo menos em público -, vai aparecer um monte de gente querendo segui-lo. Só se for um palpite que já esteja dormindo ou armazenado na cabeça do pessoal e eu apenas o desperte, ou dê de cara com ele no fundo de uma gaveta que já desistimos de arrumar.


Além disso, é injusta a fama de desrespeitoso e irreverente (debochado, dizem também) que me dão. Não sou desrespeitoso, pelo contrário, sou enquadrado ao extremo - trauma de juventude, desde um pai não muito dado a gracinhas ao colégio em que estudei, onde até nos ensinavam a nunca dizer “hein?” ao nos falarem, mas “como?” ou “sim?”, pois “hein” era considerado grossura. Quando entrei para a Academia, João Cabral acabou me dando um esbregue para eu parar de chamá-lo de “senhor” e o atendi, mas até o fim tive dificuldade em chamá-lo de “você”. Irreverente, talvez um pouco, mas não de caso pensado, é por jeito de ser mesmo. E sem faltar com o bendito respeito.


Em outras épocas, já fui até tido como subversivo e houve tempo em que quis ser, mas não andei pensando em luta armada nem em mandar ninguém para o paredão, depois de salvarmos a pátria (não salvaríamos nada, boto até as mãos para o céu porque não chegamos lá). Já me manifestei contra essa patacoada de “Fora, Lula” que começou a aparecer na internet, assim como, apesar de não compor a mesa diretora do fã-clube de dr. Fernando Henrique, fui contra a patacoada do “Fora, FH”. Me arrependi de meu voto, mas o homem foi eleito, dentro das normas de um estado de direito. É, portanto, o presidente legítimo e indiscutível e não tem nada desse negócio de “Fora, Lula”. Falar mal, sim, qualquer um pode, contanto que não cometa delito ao fazer isso. Eu, por exemplo, falo mal bastante, mas não só muitos outros brasileiros também falam como ninguém nos deu esse direito, esse direito é nosso, o ser humano só pode aspirar à plenitude de sua humanidade se não lhe tolherem a liberdade de pensar e opinar, que, na minha opinião, nasce com ele.


Assim postas, desculpo-me se verbosamente, minhas premissas, passo a novo palpite. Nós, como também vivo dizendo, temos uma tradição de subserviência à autoridade. Fazem gato e sapato da gente e continuamos a nos portar como se eles fossem nossos patrões (e que patrões!) e não exatamente o contrário, nós é que somos os patrões deles. Isso é repetido da boca para fora o tempo todo, mas na prática ocorre o contrário. Se eu fosse Nélson Rodrigues, teria a coragem de dizer que mora um puxa-saco na alma de cada um de nós, mesmo que, em alguns casos, bem pequenininho. Aturamos todo tipo de indignidade, assistimos a um festival de roubalheira de deixar qualquer um zonzo, temos um presidente que, se ocupasse um emprego normal (eu ia escrevendo “trabalhasse num”, mas o escritor tem de buscar a palavra exata), já teria sido pelo menos advertido por absenteísmo, temos um Congresso, assembléias e câmaras de onde toda hora saem escândalos de arrepiar Belzebu, um Judiciário (não se pode dizer isso, a não ser no boteco, mas eu arrisco a reproduzir aqui) em que o povo não confia, nada exceto cobrança funciona direito, trabalhamos quatro meses por ano para o governo, temos medo de sair de casa e até de ficar em casa, recebemos ordens de bandidos, somos governados a canetadas arbitrárias - e, enfim, qualquer um poderia desfiar um rosário que encheria esta página.


De vez em quando, eles falam em tolerância zero para isso ou para aquilo. Minha idéia é simples: tolerância zero é coisa nossa, não deles. Acho que já estamos crescidinhos o suficiente para engrossar e resolver estabelecer tolerância zero para com a incompetência, a má administração, o mau serviço, o mau desempenho dos nossos empregados, enfim. Nada mais de enrolação: tolerância zero. Nós pagamos, nós temos direito. Ou então não pagamos mais, apesar de ser um caso muito grave de desobediência civil, que se deve reservar para a eventualidade de não haver outro jeito, porque aí eles iam ter de prender todo mundo e eu gostaria de ver como eles iriam prender todo mundo.


De minha parte, ainda não quero ir tão longe, mas venho pensando numa desobedienciazinha civil, quando a oportunidade se oferecer. Nada de muito espetacular, até porque me falta vocação para gestos retumbantes, mas minha intenção, por exemplo, é me recusar a preencher um formulário com declaração de raça, como parece que está entrando na moda, do mesmo jeito que na Alemanha nazista ou na África do Sul do apartheid. Na verdade, penso em escrever, digamos, um turpilóquio (domingo, dia de exercício com o dicionário, não pensem que me esqueci) no local indicado e perguntar ao(à) funcionário(a) se é aquilo mesmo e se ele(a) gostaria de me ver repetir a expressão na presença dos seus superiores, da polícia, de um ministro, ou de quem lá fosse.


Estou aguardando a oportunidade. E, enquanto isso, conclamo o gentil leitor e a encantadora leitora a ações semelhantes. Existe já um remédio na praça, produto natural sem efeitos colaterais nocivos. Chama-se Vergonhanacaril e uma cápsula por dia resolve o problema. E dá um belo slogan: “Salve o Brasil, use Vergonhanacaril.” Sim, eu sei que, na nossa pronúncia, isso dá outra bela rima, mas aí você mesmo(a) escolhe, não sou formador de opinião.


 


 


O Globo (Rio de Janeiro) 29/05/2005

O Globo (Rio de Janeiro), 29/05/2005