Já se passaram 40 anos desde que, sob o impacto do golpe de 1964, escrevi o primeiro texto sobre Forças Armadas e política. Desde então, muita coisa mudou no país e nas minhas preocupações. Em 1964, a pergunta que me fiz foi ''por que não estudamos os militares?'', na suposição de que um maior conhecimento da corporação teria contribuído para evitar o golpe. Hoje, pergunto: ''por que continuar estudando os militares dentro das novas conjunturas nacional e internacional?''.
Agora, em Forças Armadas e política no Brasil (Zahar Editor), volto a sustentar que, mesmo sob a dimensão política, os estudos sobre militares ainda se justificam. É verdade que os cenários internacional, latino-americanos, com algumas exceções, e brasileiro são desfavoráveis a intervenções militares. A guerra fria é coisa do passado, o comunismo deixou de ser ameaça, real ou imaginada, a interligação das economias desencoraja aventuras isolacionistas.
Na América do Sul, a grande rivalidade política e militar entre Brasil e Argentina cedeu lugar à cooperação que, no campo militar, se materializa em operações conjuntas, navais e terrestres. Internamente, a democracia política se consolida. Nas Forças Armadas, a nova geração de oficiais não traz mais a marca da memória de 1964 e abre-se para o contato com o mundo civil, inclusive universitário.
Mas nem tudo são flores. Episódio recente, que levou à saída do ministro da Defesa, mostrou que ainda há feridas abertas resultantes do período dos governos militares. Famílias de torturados e mortos ainda aguardam informações sobre o destino das vítimas. O comando das Forças Armadas, sobretudo do Exército, insiste na inexistência de documentos, ao mesmo tempo em que resiste à abertura de arquivos. Obedecendo ao velho estilo conivente dos políticos, no conflito entre o ministro e o comandante do Exército, o presidente da República substituiu o primeiro e manteve o segundo.
Essa ferida precisa ser tratada em nome da conciliação entre os militares e parcela relevante da nação. Há direitos inalienáveis envolvidos. Só a ampla informação servirá de cicatrizante. Não é querer muito, quando se leva em conta que as Forças Armadas da Argentina e do Chile foram mais além, vindo a público pedir desculpas à nação pelos excessos cometidos por alguns de seus membros durante o período ditatorial.
Há mais. Apesar dos indicadores positivos, seria imprudente supor que já estejamos imunes a retrocessos políticos. A permanência de imensas desigualdades sociais e econômicas, a despeito do clima de liberdade e participação vigente no país, constitui um claro alerta de que nossa democracia ainda é incompleta e precária. Os efeitos da desigualdade se manifestam de maneira contundente nas inúmeras e imensas favelas de nossas cidades, grandes e médias. Acoplada ao tráfico, a pobreza urbana tem produzido um clima generalizado de insegurança e violência que o sistema de segurança pública dos estados se vem mostrando incapaz de enfrentar eficazmente. A ação do governo federal, por sua vez, tem sido tímida e esbarra nos constrangimentos do sistema federativo. Não é difícil imaginar cenários em que haja pressão no sentido de uma ação mais incisiva das Forças Armadas.
Mesmo excluindo a probabilidade de intervenções políticas, como redefinir o papel dos militares em regime democrático e em cenário de grandes mudanças internacionais? Se não é sensato nem realista defender, como fazem alguns, a inutilidade das Forças Armadas nas condições atuais, deve-se reconhecer que elas consomem recursos avultados e precisam ter seu novo papel discutido, justificado e definido.
Pode-se dizer mesmo que o debate sobre o papel das Forças Armadas hoje exige conhecimentos mais profundos e mais diversificados do que há 40 anos. Devem ser preparadas para guerra externa? Contra quem? Contra vizinhos? Devem tornar-se forças auxiliares das Nações Unidas na tarefa de policiamento do mundo? Devem dedicar-se a tarefas policiais de combate ao narcotráfico nas fronteiras e nas rotas internas? Devem preparar-se para o papel de Guarda Nacional em substituição às polícias estaduais durante eventuais explosões de violência nas grandes cidades? Ou devem dedicar-se a tarefas sociais, como o combate à pobreza, ao analfabetismo, às desigualdades?
Entre os governantes, não há sinal de mudança substantiva na postura tradicional de conivência e omissão. As discussões sobre o tema militar não têm ido além da esfera orçamentária e salarial, e de escaramuças em torno da abertura, ou da existência, dos arquivos da repressão. O Ministério da Defesa não dá sinais de ter-se afirmado como centro de competência formulador de políticas no campo da estratégia.
Corremos o risco de sermos surpreendidos pelos acontecimentos, como em 1964. Por falta de vontade política, de competência, de capacidade de antecipação, de virtu, como dizia Maquiavel, podemos ser novamente atropelados pelas rodas da fortuna.
Jornal do Brasil (Rio de Janeiro) 07/09/2005