O Globo publicou recentemente, em prosa e verso, um comentário ilustrado em torno da correspondência entre Manuel Bandeira e Mário de Andrade, boa organização de Marcos de Moraes. Contou com uma cuidadosa resenha de Reni Tognoni.
A publicação sugere reflexões de interesse para a história literária, desde logo pela circunstância de revelar certa diferença de formação, de concepção e de gosto entre Bandeira e Mário, o que a bem pensar os separa, de algum modo, no próprio campo da filosofia do modernismo.
Já me acudiu observar, em estudo de 1987, que a posição modernista de Bandeira atinge bem mais a temática do que a forma. Seu ambiente doméstico, a assistência intelectual que recebeu em casa, bem principalmente do tio Souza Bandeira, comprometido com os chamados clássicos do idioma, e as próprias inclinações de espírito do "moço Manuel" tornaram-no um moderno podado, cultivando harmonias, buscando a linha de equilíbrio, ou aquela medida que ele mesmo averbou de "mal necessário' . Esses traços culturais, somados a certas disposições de temperamento, explicam algumas disparidades em relação a Mário de Andrade. Um pequeno dado material, alguma coisa simplesmente física, aparentemente irrelevante, senão mesmo frívola, parece marcar, na própria ilustração fotográfica da reportagem, as dissemelhanças entre os dois: Mário aparece um tanto malajambrado num robe precário; Manuel sentado, de paletó, gravata e colete, correto na postura, desde o cruzamento da perna à discreta elegância na posição das mãos. Esse registro não poderia vir desligado de uma revelação do próprio Bandeira, quando disse que um colega de Academia, a que mais se afeiçoara e admirava, era o finíssimo Aloysio de Castro, um clássico purista do idioma parnasiano no verso e nos vestes, desde o colarinho, que parecia envernizado, até os requintes do colete castiço, a que não faltavam, às vezes, uns nobres botões de madrepérola. A mim mesmo disse-me o grande poeta d' O Beco que Aloysio de Castro era modelar: " nobre por fora e por dentro".
De fato, assim era ele. E Bandeira dizia mais: confessava que Aloysio o "completava" e o convencia de que o barroco pode ser "gracioso".
Louvor
Outro dado expressivo: a poesia de Raymundo Corrêa, parceiro de Bilac e Alberto de Oliveira na chamada Trindade Parnasiana, mereceu do criador de Andorinha, andorinha, o mais largo louvor, considerado, ainda hoje, o de mais alta significação. Estou aludindo ao seu estudo de 1959, em conferência na Academia. Para ela um crítico de força e brilho, Antônio Carlos Villaça, reservou o qualificativo certo: "calorosa" .
Volto à carta do pernambucano de Recife ao paulistano rebelde. O nordestino avisa: "Vou falar com franqueza, já que você m'a pede".
Aí está. O "moderno" ostenta um comportamento clássico, de sabor lusitano, no arranjo pronominal daquele " m' a pede". Mas isso é pouco. Falando de um Mário lido e não ouvido, confessa Manuel que sentiu falta da voz do amigo - uma voz que o levava a aceitar "encantatoriamente" coisas que o "exasperavam". Esse encantatoriamente, um advérbio ribombante, com um quer que seja de pernóstico, é o que pode haver de menos Bandeira ou mais conflitante com a sua simplicidade estrutural. E há também na sua carta ao querido companheiro o uso de um inesperado "todavia", vocábulo que tanto irritava certos modernos da Semana de 24, e a ele próprio, Bandeira, como várias vezes me disse.
Mas a franqueza maior, ele a revelou por inteiro quando, valendo-se do título Paulicéia desvairada, armou um trocadilho, para apontar no autor "desvarios gongóricos" e "exageros coloridos". Já agora volta a ser mais moderno e muito mais Bandeira, a pedir simplicidade, virtude tão inerente ao poder "encantatório" da sua poesia...
Detalhes
Na resposta de Mário, há também o contraditório: certos detalhes de comportamento verbal e até de construção sintática são incompatíveis com um escritor que fustigou o vezo do lusitanismo literário ou a chamada submissão ao colonialismo cultural. Repara-se nessa construção do poeta: "Se te não disse ainda, digo-te agora". E esta outra: "poetas que o não sabem ser". Se a memória me favorece, o douto e clássico Aloysio de Castro já impugnava, poucos ates de falecer, anteposição do pronome ao advérbio não, coisa que ele considerava " esteticamente infeliz" . Suas razões não eram ideológicas; não falava de "colonialismo literário"; mas o paulistano, que para Bandeira cometera " desvarios gongóricos", esse, sem dúvida, foi um guerrilheiro em ação contra a desnacionalização da nossa escrita, da nossa literatura e da nossa arte a amplo senso.
Seja como seja e descontadas as diferenças individuais de sempre, tanto quanto descompassos ou contradições em alguns lances de modernismo, a verdade final é que Manuel de Souza Bandeira e Mário de Andrade são claros exemplos de criatividade e autonomia de pensamento na sustentação das suas idéias e na construção da sua arte.
Jornal do Commercio – Rio de Janeiro – RJ, 11/04/2000