Guimarães Rosa morreu há 35 anos (em 19 de novembro de 1967), depois de haver dado, à literatura brasileira, um novo caminho. Nossa ficção jamais foi a mesma depois do lançamento, em 1956, de "Grande sertão: Veredas", que mudara nossa maneira de ver o Brasil. A novidade era tanta que, no começo, houve quem não soubesse o que dizer. Ou escrever. A estranheza de muita gente do ramo perturbava os julgamentos.
Muitos dos que, em 1956, eram tidos como de vanguarda - alguns críticos que julgavam falar pelo futuro e não viam o presente - achavam que o livro nada significava, houve até quem afirmasse, em entrevista, que ia esperar que a obra fosse traduzida para o português e só então diria o que achava. Pelo menos os que, na época, defendiam uma literatura com novidades mais visuais do que vocabulares, tinham razão no seu repúdio ao livro porque Rosa vinha a ser a maior ameaça que a literatura brasileira feita de palavras apresentava à que se prendia à visão.
Em Rosa, a palavra é tudo. Como a pesquisou, como a despiu de aumentos inúteis, como, às vezes, a tornou maior, dando-lhe aumentos necessários, sua linguagem escrita, tudo interessa, tudo parece justificar o dito de Heidegger de que "a fala é a base existenciária da língua", porque suas palavras se fundavam no modo de falar, cheio de expressividade, do povo de uma região que preservara a força de uma linguagem essencial e básica, sem os enfeites da literatice.
Em muitas de suas histórias curtas, as pesquisas vocabulares de Rosa se acentuam, numa utilização de sons justapostos que penetram no território da poesia. Em seus livros póstumos, "Estas estórias" continua as experiências verbais de obras anteriores, principalmente nas que, segundo nota introdutória de Paulo Rónai, não receberam a última demão de Rosa. São quatro: "Bicho mau", "Páramo", "Retábulo de São Nunca" e "As pedras brilhantes".
Nelas pode-se perceber o entremeio da composição rosiana. O entremeio e um pouco do modo como alisava as palavras antes de as por a serviço da estória. A palavra "alisar" me parece parte do talento de Guimarães Rosa, que "alisava" cuidadosamente cada palavra antes de a colocar na frase.
Que Rosa queria contar um caso, não há dúvida. Antes do caso, porém, - e ao mesmo tempo a ele jungido, dele dependente e indo além ele - existiam as palavras que o compunham, que lhe davam nervo e carne, que o tornavam singular e definido. Leia-se "Bicho mau". É a história de uma cobra e um homem.
Cada um sai do seu lado, a cobra depois de ter largado "aos pedaços a velha casca, já fouveira, com impreciso padrão e desbotadas as cores", o homem, seu Quinquim, filho do dono da fazenda, para olhar os que trabalhavam, até o momento do encontro, quando Rosa conta: "A cobra picara. Picara duas vezes. E o chocalho matraqueou de novo, soturno, seco". No talvez ainda incompleto esboço da estória, há um, o pouco daquela brecha que nos mostra a força de uma estrutura.
A estrutura é, em Rosa, sempre sólida. Como se tivera um arcabouço interior às palavras sobre a qual estas se haviam colocado, de tal maneira que a originalidade vocabular parece brotar de base invisível, do chão em que essa base se assenta e do modo de ele colar palavra sobre palavra. Desde o começo, outra narrativa não retocada, "O retábulo de São Nunca", deixa aparecer o interior da narração: "Só o absurdo do possível era que uma moça ia casar-se.
Ela sendo bela aos olhos que ao sair de um dia a admiravam." As palavras são decisivas, claro, mas a sintaxe as pega de rijo transformando-as em novas realidades. A cada momento da narrativa de Rosa a junção de palavra com palavra se faz como que numa explosão de novidade, e o leitor descobre-se descobrindo uma língua e uma linguagem, vê-se sem se reconhecer, indaga de si mesmo que idioma é aquele, para, logo adiante, sentir-se com ele identificado.
Em Rosa, as palavras se submetem ao enredo, à história da estória, mas ficam livres de qualquer enredo, isto é, não se deixam enredar pelo que está "acontecendo", como se fossem elementos de uma construção diferente, além dos sons, independente das sílabas e das vogais que nelas moram, mas cada trecho de frase existe não apenas por boniteza, já que sua função vai além do ritmo e da melodia, embora os dois estejam sempre ali presentes, e atinjam tanto uma audição interior como os olhos que acompanham a leitura.
Muito há ainda de se dizer sobre o barroco em Rosa. Somos barrocos por natureza, e alguns de nossos melhores escritores mergulham na literatura barroca, no rebuscado de uma cultura rica de seiva. E de que modo o fazem? Com a maior da naturalidade. Entre Euclides da Cunha, buscando e rebuscando palavras e construções sintáticas para com elas revelar realidade de seu País - do Nordeste a da Amazônia - e Guimarães Rosa, com as densas lembranças do País das Gerais, do sertão do Urucuia e das margens do São Francisco, muitas são as semelhanças. Deram-nos os dois, inclusive, a consciência de que somos um povo que tem alguma coisa de novo a dizer ao mundo.
Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro - RJ) em 04/12/2002