Que dizer de Fernando Sabino, que nos deixou há poucos dias? Que era um grande escritor? Era, mas não só, porque ele foi também uma das grandes figuras do nosso stablishment cultural, que fala por nós e nos representa. Desde os anos 40 do século XX, quando sua inquietude começava a se transformar em livros, passou a ser um ponto de referência obrigatório em nossa literatura.
Terminara a Segunda Guerra Mundial, a era atômica assustava o mundo, os radicalismos políticos se acentuavam. Fernando Sabino morou então em Nova York e só precisou de um adjetivo para defini-la: "Cidade vazia". Foi o título de um de seus primeiros livros. Quando mais tarde, passei um ano letivo dando aulas na Universidade de Columbia, constatei a precisão da palavra para mostrar aquela estranha cidade que, mais do que a maioria das outras, juntava milhões de pessoas solitárias.
Foi na volta ao Brasil que Fernando Sabino escreveu, nos anos 50, o romance "O encontro marcado", em que o pôs a nu a geração que, de 1935 a 1950, começou a ser gente, constituiu família, escreveu, discutiu, fez perguntas e desperdiçou palavras, tempo e amor.
O ímpeto que leva um homem a fazer um poema difere do que o conduz à feitura de uma história. O poema exige visão instantânea de uma realidade insuspeitada, que o poeta capta e procura colocar em ritmo adequado e palavras exatas.
A narrativa, por sua vez, se subordina a leis do tempo, a um determinado avançar de acontecimentos, de cortes inesperados, de aprofundamentos psicológicos e recursos de estilo que, postos numa história, num enredo, disciplinam o escoar dos acontecimentos. Contudo, há trechos de um enredo em prosa, em que o ficcionista consegue ter a visão instantânea, própria do poeta, de uma situação qualquer. Então atinge a narrativa um clímax de emoção que só ao poema costuma ser consentido.
E é exatamente por ser um romance sofrido, um romance feito com angústia, que Fernando Sabino atinge, ao longo de sua história, o clima de emoção da poesia. Na realidade, " O encontro marcado" é o grande poema de uma geração que procurava ajustar-se às mudanças provocadas por uma guerra considerada a mais violenta de todos os tempos. Repito que, de 1935 a 1950, uma geração passou por várias fases de desespero.
Os rapazes que, em Belo Horizonte, carregavam um esqueleto pelas ruas noturnas da cidade, arriscavam a vida em viadutos, citavam frases de poetas a cada instante, estavam todos vivendo esse momento de busca, natural a qualquer época do mundo, mas retesado, naquele instante, por uma instabilidade que vinha da falta de sentido que o dia-a-dia adquirira para os que começavam a vivê-lo. O sentimento fundo e visceral, que une o homem à mulher, também fora sendo atingido aos poucos, sem que disso nos apercebêssemos.
De repente, nessa corrida para o nada, uma geração inteira se viu perdida e teve de recorrer a uma terra firme.
De modo perturbadamente nítido, conseguiu Fernando Sabino retratar os passos dessa geração. Todos os que a ela pertencemos somos capazes de reconhecer, em seu livro, os traços de uma verdade que foi a nossa busca necessária.
Ansiávamos por uma luta política, dentro ou fora de um partido, em que mergulhássemos de corpo e alma, ou por uma religião que nos empolgasse ou por uma paixão que exigisse de nós uma dedicação exclusiva. Queríamos ter um encontro marcado, nem sempre sabíamos com quê ou com quem. Às vezes era um encontro de cada um consigo mesmo.
Sendo um texto em que muita coisa acontece, com personagens de muita ação dentro da história narrada, "O encontro marcado" é também, e principalmente, confessional. Há quem tenha defendido a tese de que só na confissão conseguimos dizer alguma coisa. Como nas de Santo Agostinho ou de Rousseau, e Proust teria sido o autor da mais longa "recherche" confessional feita por alguém.
A técnica da narrativa de Fernando Sabino era dotada de uma sólida estrutura. Tanto em "O encontro marcado" como nos muitos livros que escreveu depois dele, usou os saltos no tempo de modo natural, reconhecendo o dinamismo temporal como sendo redutível (como na frase de "O encontro" em que diz: "De repente passaram-se seis meses").
Depois de "O encontro marcado", diversificou-se a obra de Fernando Sabino, em dezenas de livros que revelaram, acima de tudo, o seu domínio da palavra. Dominou-a com simplicidade e por completo, sem lançar mão dos muitos enfeites inúteis de que a literatura em geral está cheia.
Foi escritor que sabia com toda a certeza que escrever não é apenas ocupação, mas também missão. O que ele, na realidade, tinha em vista era surpreender alguns dos mistérios do ser. Buscava também revelar uma verdade, talvez oculta na vida real, do comportamento humano.
Agora que morreu, continua, com seus livros, a estar mais vivo do que nunca. Poucos escritores brasileiros conseguiram, como Fernando Sabino, levar a seus leitores o sentimento de que eles fazem parte das histórias que Sabino conta. Estamos todos lá, porque o autor de "O encontro marcado" mergulha em suas raízes, em busca de um significado para o movimento das paixões.
Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro) 19/10/2004