Os recentes 40 anos do lançamento do romance de Adonias Filho. "Corpo vivo", sua obra-prima, não obtiveram espaço na imprensa de agora, preocupada, como é natural, com o ano de 2004. Contudo eu vos digo que nesse livro está um momento de eternidade da ficção brasileira. Num país que sente a atração da novidade, novíssimo continua sendo o tipo de narrativa de Adonias Filho, inventor de um tempo.
A eterna luta entre conceito e intuição assume em sua obra aspectos diferentes, não só no conteúdo das histórias propriamente ditas, mas também, e principalmente, no modo como o autor as concebe e executa. Há um nível de excelência literária em cada frase de "Corpo vivo" e, contudo, não consegue a feitura esconder o impulso quase selvagem que emana do livro. Essa combinação de frio artesanato com apaixonada emoção representa o lado importante da presença de Adonias Filho em nossa novelística.
Sua força vocabular é eminentemente não-discursiva. Daí a importância e a novidade de sua obra no Brasil. A história de Cajango, do índio Inuri, de padrinho Abílio, de Dico Gaspar, de João Caio, é de cenas essenciais, nada intelectualizadas, como as dos antigos gregos que matavam por vingança e morriam pela necessidade da luta. Em nenhum momento detém-se o romancista em análises.
Seu caminho não as comporta. Os símbolos de sua arte são o sangue, o rifle, o punhal, a mulher, a montanha, a floresta, os arruados, a fogueira, o caminho, as andanças - tudo o que provém do nomadismo de um período do homem e da violência primitiva em que esse nomadismo implica. Por isto, seus romances não têm um ritmo cadenciado de obra que proporciona repousos ao leitor. Não. Para ele não há descansos. Assim como na vida de Cajango e nas realidades que o acompanham, tampouco para o romancista pode haver paradas.
O livro é de um só hausto. Começa por onde termina, termina por onde começa, e suas figuras se misturam em lutas, nítidas no entanto, e se integram numa unidade de personagens e de âmbito solidamente marcado, como se relances de tragédias tivessem sido gravados visualmente para o consumo do leitor.
A altitude da narrativa chega a tal ponto de beleza universal que a gente é capaz de estranhar quando o romancista fala em Ilhéus e Itabuna. Não que a humanidade dos que habitam o livro não seja passível dessa tipificação geográfica, mas a veemência de sua linguagem simbólica como que nos deixa inermes diante da descoberta de que tudo aquilo se passa no Brasil.
O livro é dividido em quatro partes e, antes de cada uma, pôs Adonias uma introdução, uma "ouverture" em tudo de acordo com o espírito particular daquela divisão. Uma delas termina assim: "Ela, a mulher, poderá aproximar-se. E, em silêncio, quando mover as mãos, voltará a saber que de palha é a aspereza dos cabelos".
Outra: "As florestas como que se encolhem para o sono nas trevas. O ninho, ele pensa". A quarta começa com estas palavras: "Poderão viver entre os bichos da selva, nus poderão andar, e paz existirá porque outro homem e outra mulher não descobrirão o ninho".
Do primeiro ao último som, o livro é como um poema. Os rótulos que inventamos ao longo dos tempos, para facilitar as classificações e solidificar a atividade crítica, pouco valor têm diante das obras que ultrapassam o bom gosto comum. Romance e poema são no fundo uma só coisa e não foi à toa que um poeta da força de Robert Graves rejeitou todas as racionalizações da obra de arte ao afirmar que elas afastam o escritor do que é essencial.
Entre "Invenção de Orfeu", "Romanceiro da Inconfidência", "O caso do vestido", "Gabriela", "Crônica da casa assassinada", e "Corpo vivo" - para citar obras de três poetas e três romancistas que falam poeticamente - pode a diferença ser de ângulo, de técnica, de grau, mas nunca por causa de uma separação específica. O tom de poema de "Corpo vivo" está na linhagem da narrativa heróica -e da canção para exaltar feitos que recebemos de Homero e dos poetas anteriores à época do domínio da lógica.
E as últimas palavras do livro, que repetem a certeza do encontro do ninho, fecham essa cadência de poesia bem realizada; "A serra ressurge, aleijão medonho, um homem e uma mulher agora em suas entranhas. Não há febre, o calor diminui, mas é a serra que se levanta dentro do seu olhar. Cajango e a mulher, as mãos nas mãos, pisam chão úmido. As rochas como que se movem, dobrando-se a serra, para recebê-los. Descobrirão as cavernas, examinarão os fossos, encontrarão o ninho".
Entre os romances brasileiros publicados depois da II Grande Guerra - tomando-a como ponto de partida de uma profunda modificação em nossa literatura - "Corpo vivo" é o exemplo da obra avançada, com originalidade de concepção e de feitura e em que conceito e intuição como que se pacificam e se dão as mãos.
Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro - RJ) em 20/04/2004