Muito já se procurou e se continua a procurar um nome para designar a curiosa organização política, jurídica, social e econômica brasileira. Singular fenômeno em toda a História da humanidade, não é, ainda neste estágio de nosso conhecimento, um desafio aos filólogos. Permanece ainda terreno para vastíssima investigação científica preliminar, feita por historiadores, sociólogos, economistas, antropólogos e mais inúmeros praticantes das chamadas ciências humanas, pois ninguém, como não ignora quem quer que já tenha tentado isso com um estrangeiro, sabe explicar o Brasil, nem como funciona nem por que funciona do jeito que (não) funciona. Talvez requeira um gênio sintetizador, que a Providência ainda não nos enviou.
Como não tenho compromisso com a filologia e já me divorciei sem saudade das ciências sociais, faz bem mais tempo do que têm de idade a catita leitora e o guapo leitor, posso fazer o exercício, que proponho como brincadeira a vocês também, de achar um nome para o nosso, digamos, regime. Não sejamos complicados como a Constituição brasileira, que só falta tratar do peso e da dimensão das vassouras de gari em todo o território nacional. Procuremos a eloqüência da concisão, que, além de tudo, traz a vantagem de ter uma conotação especial tanto mais rica quanto econômica nas palavras. E cada um, espero eu, verá nesse nome o que a realidade em torno lhe sugere.
Aconselha, pois, o bom senso, que, além de contarmos com o que, no passado e no presente, vivemos dessa realidade, passemos novo olhar em redor, só para dar uma refrescadinha na memória e ver o que de mais recente se noticia. Passo pela tevê ligada, detenho-me um instante, aparece uma reportagem sobre a violência contra professores, especialmente da rede pública. Agora os professores são espancados pelos alunos e há casos de internação e cirurgias. O professor de hoje merece receber, além da merreca que já o estimula a emigrar para o Gabão, um adicional de periculosidade. Mas me ocorre que, em mais uma tacada de mestre, o presidente baixará uma Medida Provisória, criando um cargo de segurança para cada professor. Assim, não só resolverá o problema, como criará empregos para pelo menos parte dos que ainda não foram contemplados pela base aliada, diminuindo, de quebra, os índices de desemprego.
E, falando em segurança, sabemos nós e sabem os desgovernantes que ora nos afanam, que a segurança, neste país, já foi privatizada. Antes um dever elementar do Estado, agora é como saúde, igualmente antes um dever do Estado. Quem quer saúde terá que desmentir grosseiramente a afirmação do presidente, segundo a qual chegamos quase à perfeição e, ainda mais, que o tratamento que lhe dão está ao alcance de qualquer cidadão - terá que comprar um plano de saúde. Da mesma forma, quem quer segurança terá que comprar um plano de segurança. O pessoal do ramo ainda não se organizou nos mesmos moldes, mas isso não tarda. Além das milícias nas favelas, teremos as de ruas, quarteirões ou bairros, certamente com direito a carteirinha. Várias ruas, quarteirões e bairros já têm sua segurança privada. Até os menos sofisticados sabem que os impostos pagos não são para lhes dar nada em retorno, são para sustentar o governo, manter um povo pobre, sem educação e mal-informado como preciosa massa de manobra e, notadamente, para serem furtados, nas miríades de esquemas que inventamos e continuamos a inventar todos os dias.
Já posso até ver anúncios aqui na televisão, enaltecendo, por exemplo, o Plano de Segurança Privada Porradex. Além de não ter carência, o plano lhe garante plena segurança em seu bairro, rua ou território contratado, com direito a um certo número de operações arriscadas por mês, como sair de Rolex ou tênis de grife em qualquer cidade brasileira coberta pelo cartão. Além disso, mediante um acréscimo de apenas R$ 19,99 por mês, o filiado tem direito à carteira Aço Blindado, que poderá ser apresentada ao assaltante no ato do assalto e que lhe dá direito a muito menos assaltos do que a carteira Standard, além de não protegê-lo de coronhadas e agressões similares. Rapaz, agora que estou pensando nisso, vejo as milhares de oportunidades abertas e os desenvolvimentos que essa inovação pode experimentar. Até nisso o Homem pensou. Já que, apesar de ter sido criada com objetivos opostos, a polícia é freqüentemente também uma questão de segurança pública, ele privatizou a segurança e deixou o tão falado Primeiro Mundo comendo poeira. Já pensou a sensação de virar para o assaltante e dizer "perdeu, eu tenho todos os cartões de segurança privada"? Até os bancos vão entrar logo nessa, até porque é furto como os que eles já praticam, só que com nomes mais artísticos e, provavelmente, em inglês, como fica bem para instituições respeitáveis.
Também vejo no jornal que é considerada errada e antipatriótica a decisão judicial, já chamada popularmente de "boca de esgoto", que permite ao pessoal da chamada ficha suja candidatar-se à vontade. Que falta de visão, minha gente, onde é que vocês moram? Se fizerem isso a sério mesmo, vai faltar político para se candidatar. Não é o que lhes parece? Vocês querem roubo, mentira e esculhambação sem ter quem roube, minta ou esculhambe?
É, questão difícil mesmo, essa de conseguir um nome para a nossa realidade política, administrativa, social, moral etc. Já tentaram muito cleptocracia, mas hoje se sabe que estamos muito além disso. Ser governado por ladrões não é exclusividade nossa. Difícil, difícil. Ocorreram-me aqui cacocracia e, principalmente, coprocracia. Não vou dizer o que esta seria a quem não entendeu, mas basta procurar no dicionário outras palavras começadas por "copro". Não lhes parece feliz? Até o cheiro combina.
O Globo (RJ) 15/6/2008