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Poesia e palavra

 

Precisamos da poesia. Não só de tê-la, lê-la, mas também de a discutir. Nos momentos de crise geral, como os de agora, é o poeta quem primeiro descobre o sinal da mudança. Quando estudamos e discutimos os movimentos vanguardistas em poesia a partir do Século XIX - a partir, digamos, de Beaudelaire e Rimbaud - damo-nos conta que a tranqüilidade dos que detiveram, desde então, o poder, era falsa. De um lado, Kierkegaard - desconhecido ou mal-visto - expunha as angústias que não se notavam.


De outro, Marx assinalava os males de uma sociedade composta de classes desprotegidas. De um terceiro, Niertzsche mostrava os desvios de uma filosofia que julgava ter-se transformado em ciência pura, De outro ainda, Dostoievski exibia um tipo de literatura cujos detalhes podiam parecer de mau gosto, mas que, em seu conjunto, chegaram ao grandioso e ao trágico.


A primeira dúvida tinha de ser em relação à palavra. É bom que nos lembremos da afirmativa de Dionísio de Helicarnaso, de que "a linguagem é alguma coisa de exterior ä paixão ou à idéia que nela se manifesta, e como coisa que pode ser manejada à parte e ter beleza própria, independente do pensamento." Antiga, portanto, a tese de que a palavra é capaz de tudo. Houve, ainda no Século XIX, a apologia do valor musical da palavra (Verlaine: "De la musique avant toute chose"; Mallarmé: "Reprendre à la musique som bien").


O próprio Mallarmé lutou pela inovação da matéria tipográfica, surgindo então uma neo-tipografia e o gosto do caligrama, de que Apolinaire seria, em breve, um bom executor. Na realidade, o que impulsionava Mallarmé, era a certeza de que "as palavras podem criar uma realidade ou, pelo menos, uma realidade superior".


Se o poeta se prende demais à idéia, adeus musicalidade. Mas, sem a idéia, adeus caráter dramático do poema. Livro recentemente publicado no Brasil - "Escritos sobre poesia & alguma ficção", de Antonio Carlos Secchin - revela caminhos e meandros que nossa poesia percorreu - e ainda percorre - do Século XX para cá. É, mais uma vez, a necessária discussão do que de poesia temos feito, e de como isto nos representa e nos apresenta, como dominadores da palavra e criadores de uma "realidade superior". Praticamente todos os poetas brasileiros tidos como significativos são estudados e discutidos nesse volume, que abre uma larga faixa de informação e apreciação cujo conhecimento passa a se constituir e como imprescindível no estudo e na discussão da literatura brasileira recente.


Leia-se este belo e preciso parágrafo de Secchin sobre Cecília Meireles: "Em Cecília, a canção é incansável: cantora do próprio ato de cantar, a poeta se multiplica nos inúmeros acalantos, árias, bailes, baladas, canções, cantares, cantatas, cânticos, cantigas, chorinhos, concertos, danças, improvisos, interlúdios, madrigais, melodias, modinhas, noturnos, motivos, músicas, oratórios, pregões, prelúdios, ritmos, serenatas, suítes e valsas que integram o título de seus poemas e livros."


O autor do presente artigo, em visita que fez a Paul Eluard, já lá se vão muitos anos, em Paris, ouviu do poeta, a quem perguntei o que na realidade é poesia, a seguinte frase: "Poesia é a linguagem que canta." Publiquei essa resposta na entrevista que então escrevi para o "Jornal de Letras" dos irmãos Condé, e ela serviu de assunto para mesa-redonda de que participamos então Manuel Bandeira e eu. Mais tarde, em encontro com o poeta inglês Robert Graves, na Ilha Maiorca, dele ouvi a mesma frase.


Outro poeta, também extensivamente estudado nos "Escritos" de Secchin, é João Cabral de Melo Neto, que forma, com Jorge de Lima e Carlos Drummond de Andrade, o trio de nossos maiores poetas a partir da Semana de 22. Do famoso poema de Drummond, "Infância", com Robinson Crusoé sendo personagem, o analista une Robinson ao poeta de qualquer tempo, neste trecho:


"E Drummond, por ter sido poeta a vida inteira, pôde desenvolver essa faculdade de circular ininterruptamente entre o reino da realidade pragmática e esse espaço imaginário onde tudo é possível. Ele pôde brincar de ser Robinson Crusoé com uma ilha portátil de poesia - pois, na personagem náufraga de Robinson, localizamos a própria figuração do poeta, um ser apto a acolher vozes vindas de todas as direções, de todas as culturas e etnias, e recria-las no timbre particular de sua intransferível dicção.


E esse espaço mágico, que é o mais solitário e, ao mesmo tempo, o mais povoado de todos, espaço em que o indivíduo consegue transitar da solidão radical para a solidariedade mais irrestrita, atende pelo nome de literatura."


O livro de Antonio Carlos Secchin, "Escritos sobre poesia & alguma ficção", é dos que fazem bem a uma literatura, como a nossa, que precisa de poesia e palavra, e de constantes reaferimentos da enorme produção literária que temos tido nos últimos tempos. Lançamento da Editora Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Supervisor editorial: Dau Bastos. Projeto gráfico de Gilvan F. Silva. Capa de Heloísa Fortes.




Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro - RJ) em 10/12/2003

Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro - RJ) em, 10/12/2003