Tão forte se tornou a posição de Machado de Assis na ficção brasileira, em nossa contística, na crônica e mesmo na análise de nossa cultura em geral, que sua poesia foi sempre colocada em plano inferior e, por isto, muito pouco estudada ou mesmo lembrada. Contudo foi assim que ele apareceu quando o menino de 15 anos, com um soneto, chamado "À Ilma. Sra. D.J.P.A.", que num jornal sem importância, o "Periódico dos pobres".
Pelo primeiro quarteto se vê que o menino estava mesmo engatinhando na arte do verso: "Que pode em um momento descrever/ Tantas virtudes de que sois dotada/ Que fazem dos viventes ser amada / Que mesmo em vida faz de amor morrer!" Não deixaria ele, porém, de fazer poesia a vida inteira e de nos deixar versos, tendo publicado quatro volumes, "Crisálidas" (1864), "Falenas" (1870), "Americanas" (1875) e "Ocidentais" (1901).
Veja-se, nesses títulos de Machado, o espírito de precisão do autor: são todos de uma só palavra e no plural. Tinha Machado 25 anos quando lançou seu livro "Crisálidas". Era o seu primeiro e apareceu com prefácio de Caetano Figueiredo. Estava então apaixonado por Corina (na verdade, a atriz portuguesa Gabriela da Cunha).
Na proximidade das comemorações do centenário da morte de Machado, a ocorrer em 2008, é lançado um livro perfeito chamando a atenção para sua poesia. É "Do sublime ao simples: A poesia de Machado de Assis", de Miriã Xavier Benício. Temos, afinal, um estudo preciso da arte poética de Machado, com análises de seus versos e transcrições de textos a eles referentes. Diga-se que o próprio título do livro de Miriã Xavier Benício foi inspirado em Machado que, no seu ensaio "Instinto da nacionalidade, afirma: " ... o sublime é simples."
O desenvolvimento da poesia de Machado de Assis aparece com a maior clareza ao longo do estudo minucioso da poesia machadiana, que a autora empreende. Os poemas que mais se destacam na obra machadiana - "A mosca azul", "A Carolina", "Soneto de Natal", "Uma criatura" (com os versos finais "Ama de igual amor o poluto e o impoluto: /Começa e recomeça uma perpétua lida, / E sorrindo obedece ao divino estatuto, / Tu dirás que é a Morte; eu direi que é a Vida").
As influências indígenas, histórias chinesas, versos narrativos, traduções, tudo mostra o mergulho de Machado na elaboração poética, no modo de juntar palavras para atingir uma verdadeira emoção. O poema "O corvo", traduzido por Machado de Edgar Allan Poe, revela o gênio vocabular de Machado. Em Poe, o ritmo do poema, adota um tom melancólico, seguindo a própria tese de seu criador, para quem a melancolia era "a mais legítima das tonalidades poéticas".
Uma leitura do original de "The raven" com a tradução machadiana mostra que a, digamos, melancolia original é mantida como fruto de uma análise e de um raciocínio sobre quais as melhores palavras portuguesas capazes de atingir o "sentimento" do poema. Nessa tarefa, comenta Miriã Xavier, é o seguinte "subordinado ao controle do pensamento".
O "Círculo vicioso", do vagalume ao sol, é o mais sintético (bem machadiano) dos símbolos poéticos da insatisfação, palavra que, de certa maneira, define o próprio insatisfeito Machado no seu trabalho incessante de buscar o entendimento das coisas através da palavra, através do único meio que o homem tem de sair para fora de si mesmo. Foi natural, que se aproximasse também de Hamlet e que traduzisse o monólogo básico posto diante de uma escolha. Na tradução do "To be or not to be".
Machado foge ao "ser ou não ser", para começar assim: "É mais nobre a cerviz curvar aos golpes / Da ultrajosa fortuna, ou já lutando / Extenso mar vencer de acerbos males? / Morrer, dormir, não mais. E um sono apenas. / Que as angústias extingue e à carne a herança / Da nossa dor eternamente acaba, / Sim, cabe ao homem suspirar por ele. / Morrer, dormir. Dormir? Sonhar, quem sabe?"...
O livro de Miriã Xavier Benício é digno de ser reeditado para uma apresentação especial no decorrer de 2008 quando o Brasil estará lembrando Machado pelo Centenário de sua morte.
"Do sublime e do simples: a poesia de Machado de Assis", de Miriã Xavier Benício, é um lançamento das Edições Alba de Varginha, MG. Capa: Reprodução de fotografia de Machado de Assis quando jovem, à época da composição dos poemas analisados. Arte final de Dílson Braga. Contra-capa: reproduções dos quatro livros de poesia de Machado de Assis.
Tribuna da Imprensa (RJ) 4/9/2007