As diferentes constituições brasileiras consagraram o princípio que os poderes são independentes, mas harmônicos. O uso ilimitado do instrumento da Medida Provisória parece derrogar essa tradição republicana de equilíbrio dos poderes,
impedindo o Congresso Nacional de funcionar em sua plenitude como Casa da representação popular, viga mestra da democracia brasileira.
A adoção do instituto jurídico denominado de Medida Provisória, criado pela Constituinte 1987/88, decorreu de tosca adaptação ao regime presidencialista vigente no País de igual dispositivo da Constituição Parlamentarista da Itália, os chamados "provvedimenti provvisori", permitidos tão-somente em três casos: segurança nacional, calamidade pública e normas financeiras.
É oportuno recordar que, ressalvado o ocorrido com a Constituição de 1988, a função de legislar pelo Executivo foi adotada sempre em períodos excepcionais da vida institucional do País, a saber: da proclamação da República até a promulgação da Constituição de 1891, no Governo Provisório que se instalou após a revolução de 1930, no Estado Novo, decretado por Getúlio Vargas em 1937, e no regime militar, por intermédio do Ato Institucional nº 2 (1965), da Constituição de 1967 e em decorrência da Emenda nº 1 de 1969, editada pela Junta Militar.
Na versão brasileira, as medidas provisórias foram, contudo, bem mais permissivas do que os decretos-leis utilizados pelos sucessivos governos militares, uma vez que neles o objeto sempre esteve limitado: no AI-2, à matéria relativa à segurança nacional, na Constituição de 1967, à segurança nacional e finanças públicas, na Emenda nº 1/69, à segurança nacional, finanças públicas, criação de cargos públicos e fixação de vencimentos, desde, ressalte-se, "que não houvesse aumento de despesa".
Para agravar a situação, a Emenda Constitucional nº 32, de 11 de setembro de 2001, é um caso explícito de emenda pior que o soneto, pois adotou critério diferente do que vigorou nas constituições de 1967, 1969, no texto original de 1988 e na matriz italiana desse instituto jurídico ao acolher princípio do direito privado de que tudo é permitido, exceto o que está legalmente proibido, e inverter a lógica até então predominante em matéria constitucional, prevendo apenas os casos em que o uso das medidas provisórias é proibido.
Ademais, a Emenda nº 32/2001 estabeleceu procedimento que muito contribuiu para engessar o funcionamento das duas Casas do Congresso Nacional ao prescrever o sobrestamento das deliberações legislativas, se a medida provisória não for apreciada em até 45 dias contados de sua publicação.
É notório que o Poder Executivo vem exercitando cada vez mais e com enorme freqüência a faculdade de baixar medidas provisórias - muitas das quais sem observar os pressupostos de relevância e urgência. Na prática, esse excesso associado ao sobrestamento da pauta produz a procrastinação da agenda de trabalho do Poder Legislativo e o retardo do cumprimento de suas atividades.
Apenas para exemplificar, conforme se extrai das atividades do plenário, nos primeiros cinco meses da Legislatura (fevereiro/junho), de 57 sessões deliberativas pautadas no período, na realidade houve apreciação de matérias legislativas somente em 28 sessões, menos da metade, portanto, do total - algumas das quais por curto espaço de tempo, suficiente apenas para a votação de itens acordados pelas lideranças. Nas restantes 29 sessões, a Ordem do Dia esteve obstruída em virtude de medidas provisórias.
Tais considerações têm o objetivo de chamar a atenção para fenômeno que marca o nosso País pela drástica redução da prerrogativa do Congresso da iniciativa de propor e votar leis.
E, em circunstâncias como essa, convém ter presente palavras proferidas em 1884, por Woodrow Wilson, então professor de economia política em Princeton e, posteriormente, presidente dos Estados Unidos: "Tão importante como legislar é uma fiscalização vigilante da Administração, e ainda mais significativa do que a lei é a instrução e orientação em assuntos políticos que o povo pode receber de um Congresso disposto a discutir às claras os problemas nacionais".
Jornal do Commercio (PE) 3/8/2007