O tardio discurso presidencial de ontem abusou do plural majestático, próprio dos reis, imperadores e papas, "nós", em lugar do "eu" que compete a todos que não se julgam reis, imperadores e papas. No plural, ele pediu desculpas à nação, reconhecendo os erros de seu governo e seu partido. Só usou o singular para se declarar indignado. Qual seria a alternativa dele? Declarar que estava solidário com a corrupção?
Lembro um filme de Kubrick, o "Dr. Fantástico", quando uma superfortaleza norte-americana foge do controle militar e se dirige a Moscou, para jogar uma bomba atômica na capital da ex-União Soviética.
O presidente dos Estados Unidos pega o telefone vermelho e fala com o presidente soviético: "Nikita, um avião dos nossos vai jogar uma bomba atômica em cima de vocês. Eu lamento muito!". Nikita responde, furioso: "Eu lamento muito mais do que você!".
Por falar em erros de governo, lembro outro episódio, não da ficção, mas da realidade. Em 1979, na crise entre os Estados Unidos e o Irã, com reféns presos na embaixada norte-americana em Teerã, a coisa esquentou, houve ameaças de resgate e vários incidentes que quase provocaram uma guerra. Reconhecendo o erro, o presidente Carter foi para a televisão e declarou: "Eu, Jimmy Carter, presidente dos Estados Unidos, declaro que sou o culpado por toda a lambança que cometemos!" (não falou em lambança, mas em coisa equivalente).
Pagou um preço por isso: não foi reeleito, contrariando a série de reeleições naquele país, onde até Bush foi reeleito. Mas ganhou um Nobel da Paz e continua sendo usado pelos EUA e pela ONU como um mediador aceito em todas as partes do mundo. Ele poderia ter culpado o Pentágono, a CIA, os adversários de seu país. Mas usou o pronome na primeira pessoa do singular: "eu".
Lula apelou para o "nós", permitido pela gramática e pelo uso diplomático. Não por humildade e protocolo. Por dissimulação, aliás inútil.
Folha de São Paulo (São Paulo) 13/08/2005