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Piano na Ouvidor

 

Há 20 anos, Rodrigo Ferrari me telefonou eufórico para dizer que sua livraria, a pequena e charmosa Folha Seca, iria se mudar do Centro de Artes Helio Oiticica, na praça Tiradentes, para um espaço maior na rua do Ouvidor, entre 1º de Março e Travessa do Comercio. Sem que ele pedisse, fui logo me metendo. Era um erro, exclamei. Imagine trocar o Helio Oiticica, naquele prédio lindo de 1872, pela rua do Ouvidor. Ela fora chique no tempo de Machado de Assis, mas era agora uma rua triste e abandonada. Nada de importante acontecera nela desde a troca de bengaladas entre Olavo Bilac e Pardal Mallet em 1889. Rodrigo riu, me ignorou e convidou para a inauguração.

Há dias, ele ligou para me lembrar da festa dos 20 anos, neste sábado (20), da Folha Seca na Ouvidor. E nem precisaria porque, nos últimos 20 anos, a cada dia 20 de janeiro, compareci a todos os aniversários da livraria. São Sebastião é testemunha. A rua de fato ainda tinha seus encantos quando Rodrigo foi para lá, mas seu dinamismo ajudou a reavivá-los. Ele tinha razão —a Folha Seca só podia estar ali.

É uma livraria do Rio, com livros sobre tudo da cidade, de história, literatura e urbanismo a política, música popular e futebol. Seus clientes refletem essa mistura: vão de estudantes, professores e advogados a escritores, músicos e cartunistas, muitos deles entre os melhores papos da praça. E, por seu histórico de rodas de samba e de choro aos sábados —todos os grandes do gênero no Rio já tocaram lá—, viu nascer em torno os templos da baixa gastronomia carioca, como a Toca do Baiacu.

Neste sábado, como já é tradição no aniversário, Rodrigo terá um piano de cauda no meio da rua, em frente à Folha Seca, a cargo do pianista Cliff Korman. A Ouvidor do velho Machado nunca viu isso.

Aprendi. Há 20 anos, sempre que um amigo me diz que vai mudar de endereço, abstenho-me de dar palpite.

 

 

 

Folha de São Paulo, 18/01/2024