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Pena de nós, não precisava

 

No sétimo dia de um luto discreto, cai o pano da Copa, abre-se o das eleições de outubro. O legado imaterial da bela festa que vivemos é ter posto em evidência que a sociedade brasileira mudou muito e para melhor, o que, não sendo um fenômeno claramente perceptível no dia a dia, já esboça o futuro do país.

Foi, sim, uma prova de fogo. Os brasileiros reagiram à eliminação da nossa equipe com maturidade que não esperávamos de nós mesmos, habituados que estamos a nos menosprezar. Onde choramos, qualquer um chorava. Dar a volta por cima que demos, no melhor estilo do mestre Vanzolini, quero ver quem dava. Equivocaram-se os que esperavam uma reação histérica frente à derrota, quebra-quebras e ranger de dentes. Em vez disso, houve lucidez face às nossas deficiências, aplausos, em campo, para o adversário que nos devastava e justificado orgulho de tudo mais que, na Copa, foi grande sucesso.

Houve tristeza; depressão, não. Nas esquinas virtuais, o debate sobre as causas do fracasso esquentou. A vitalidade das redes, que a sociedade brasileira vem usando a fundo, mostrou uma opinião pública que discute e argumenta, o que é bom para a democracia. Acrescente-se a explosão de humor cáustico que desdramatizou o que se esperava fosse um velório. Pena de nós, não precisava...

Os aplausos vão para o povo brasileiro — saravá, saudoso Ubaldo — que, em todos os níveis, tem muito mais competências do que admitem os que alimentam a baixa estima e os catastrofismos. O cartão vermelho vai para o padrão Fifa de corrupção. Entre as poucas prisões, a mais notória foi a de um seu parceiro privilegiado que, como um camelô fugindo do rapa, escapou pela porta dos empregados do Copacabana Palace quando a Polícia Federal sentiu cheiro de enxofre no negócio milionário da venda de ingressos. Cartão vermelho também para o superfaturamento dos estádios e para o desabamento de um viaduto mal construído que feriu e matou, crimes que terão que ser apurados.

A sociedade brasileira surpreende. Já tinha surpreendido com as manifestações pacíficas de junho do ano passado ao colocar claramente suas reivindicações e ao se retirar das ruas, dando prova de bom senso, para não confundir-se com um punhado de mascarados saídos não se sabe de onde nem mandados por quem.

Os candidatos à Presidência da República vão se defrontar com essa sociedade que mal suspeitam. Melhor do que imaginam, ela sabe o que quer e o que está em jogo. Se suspeitassem não venderiam a alma em alianças tragicômicas em troca de um minuto a mais na televisão. Faço uma aposta ousada que vai contra o senso comum: marqueteiros não terão sucesso junto a uma população descrente das balelas que lhe contam nesse tempo de televisão tão cobiçado. Essa venda de almas e votos, ao contrário, tira votos pela indignação que a geleia geral provoca.

Há, no eleitorado, uma forte exigência de verdade que ainda não encontrou eco. Daí o voto órfão. Na última pesquisa Datafolha, somados os votos brancos, nulos e indecisos, um em cada quatro brasileiros não escolhe ninguém. É possível que essa mistura de desilusão e perplexidade venha a decidir o resultado das eleições.

A aposta na propaganda para conquistar esses votos pode sair pela culatra. Como assistir, no horário eleitoral, a bravatas que a vida real em tempo real desmente? Como não se irritar com essa espécie de making of que vem a público, onde se discute as estratégias de convencimento que serão adotadas em campanhas milionárias?

Esta seria a campanha das campanhas se desta vez, no jogo eleitoral, a mágica ilusionista do marketing perdesse para a vida real, para a lucidez da população sobre o que precisa para bem viver.

O eleitorado deixou de ser massa informe. Quanto mais se individualiza, mais se torna imprevisível, ganha em diversidade e complexidade. As malhas da “ciência” marqueteira terão problemas para pescar esse eleitorado nuançado, que vive às voltas com os infindáveis problemas de um cotidiano áspero e há muito perdeu a paciência com promessas. O teste do candidato será a credibilidade que se perde ou se ganha em não mais que um minuto no cara a cara com o eleitor. O voto que hoje é órfão e em outubro será decisivo só encontrará abrigo na sinceridade.

Derradeiro legado da Copa: aprendemos, com o descalabro de Felipão, a desconfiar das lideranças iluminadas e a confiar nas equipes bem treinadas e competentes, onde não há herói nem condottiere, apenas cada um fazendo bem o que tem que fazer na posição em que joga no time. Não é isso o bom governo?

O Globo, 19/07/2014