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Pão e justiça

 

Lá pelos meados do primeiro milênio, um grupo de romanos saiu à rua para protestar (é hábito antigo do homem civilizado, esse de passear seu protesto ao ar livre) e sintetizou suas reivindicações em dois itens: pão e Justiça.


Não mudou muito o Natal de outrora, nem mudamos nós, que ainda queremos precisamente pão e justiça. Na constante busca de um e de outra, demo-nos conta da necessidade de um terceiro elemento: a verdade. Temos sede e fome de verdade, e só através dela - da verdade objetiva do trigo bem plantado e do pão bem-feito como da verdade total que é a base da Justiça - poderemos produzir esses dois alimentos imprescindíveis à sobrevivência da humanidade.


Aquele estranho homem, alto e magro, cujo nome é hoje citado em todo o mundo, esse Eric Arthur Blair, que imortalizou o pseudônimo de George Orwell, escrevia para descobrir a verdade sobre as coisas e, no seu ensaio "Por que escrevo?", de 1947 (ensaio que se encontra hoje no volume brasileiro "Dentro da baleia e outros ensaios"), confessa que, desde sua participação na luta contra Franco, na Espanha, tudo o que escreveu foi para combater o totalitarismo, que surgia como o ápice da mentira.


Nessa época, buscou Orwell o isolamento da pequena Ilha de Jura, na Escócia, para ali elaborar o que acabaria sendo o livro chamado "1984", cuja linha mestra era a busca da verdade e a denúncia da não-verdade inerente a todo totalitarismo. Ao criar um Ministério da Verdade, que se especializava em produzir mentiras, ia Orwell ao osso do problema, a começar pelas três afirmações que nos joga na cara: Guerra é paz - Liberdade é escravidão - Ignorância é força.


Estava Orwell, com isto, desmascarando a nova linguagem usada pelos totalitários, a novilíngua capaz de afirmar que 2 + 2 são 5. O totalitarismo, tal como Lenin, Stalin, Mussolini e Hitler praticavam, aparecia como fenômeno exclusivo do século XX, só tornado possível por causa dos novos meios de comunicação e de toda uma técnica avançada e sofisticada, que uma polícia eficiente na repressão absoluta podia utilizar para impor a todo um país a não-verdade de que 2 + 2 sejam 5.


Dono desses novos instrumentos e contando com o apoio de boa parte dos intelectuais de todo o mundo, conseguiu o totalitarismo do século XX superar qualquer absolutismo anterior. Escrevi certa vez que toda ortodoxia pode acabar numa inquisição, mas a de nosso tempo dispôs de uma tecnologia a que Torquemada não tivera acesso.


George Orwell descobriu e analisou a tentação que a novilíngua representou para muitos escritores e uma parte da intelligentsia. No seu romantismo e na tendência natural de ver na utopia a solução imediata (e final?), ainda mais na sua naturalíssima tentativa do encontrar saídas para a pobreza e as injustiças sociais, podem eles aceitar maiores injustiças, sofrimentos de gerações e ate mortes, quando presos à idéia do totalitarismo é a resposta.


Viu também Orwell a real militarização da cultura e da sociedade embutida no totalitarismo. Operários e camponeses passavam a ser considerados soldados e os chefes se vestiam de generais e comandantes (Mussolini, Hitler, Stalin, Fidel Castro, Ortega).


Orwell anunciou e denunciou, logo após o fim da II Guerra Mundial, o ódio que seria a tônica do homem nas décadas seguintes, ódio no fazer jornais, ódio nos sermões, ódio nas orações, ódio na política, ódio na utopia, ódio até no fazer amor. A criação do Ministério do Amor para promover sessões de ódio é um dos achados lúcidos de Orwell na sua análise das sociedades fechadas que tão profundamente cercaram o nosso tempo.


Os que defendemos a sociedade aberta democrática, vemos na utopia totalitária não só uma constante ameaça à liberdade, mas também a instalação oficial daquilo que Vaclav Havel chamou de "sistema de morte", capaz de, com as melhores intenções, matar milhões de pessoas que simplesmente discordem de planos de governo impostos por uma nova classe.


Neste ainda começo de um milênio, depois que os muros criados pela utopia totalitária caíram, é oportuno que façamos uma definição do que desejamos para o Brasil.


Desejamos uma democracia que aumente a riqueza do País e promova uma redistribuição de renda justa - que permita ao brasileiro trabalhar e produzir em liberdade, que defenda nossos vazios interiores e tudo faça pela saúde do povo, que livre a Amazônia de seus exploradores nacionais e internacionais - que resolva os problemas de maior urgência como o do analfabetismo, o do menor abandonado e o do aumento da criminalidade - que reestruture a educação e, através de um tipo brasileiro de revolução cultural, empolgue o País numa conscientização de sua personalidade nacional e de seus recursos - que combata a corrupção e o mensalão de qualquer tempo, seja em que nível estiverem - e que mantenha entre nós o espirito de sociedade aberta, não-"1984", capaz de utilizar a alegria de viver do brasileiro como elemento de convivência democrática na conquista do pão e de Justiça.


A recolta de ensaios "Dentro da baleia", de George Orwell, mostra que ele conseguiu, com a lucidez de suas análises, "transformar a escrita política em arte" ao mesmo tempo em que chamou a atenção para as mentiras de um tempo. Volume organizado por Daniel Piza, que também contribui com um bom prefácio para o livro. Orelha de Sérgio Augusto, capa de Mariana Newlands. Lançamento da Companhia das Letras.




Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro) 3/1/2006