A poesia é, neste País, das realidades mais vivas e revolucionárias que temos. Volta e meia, poeta novo começa a fazer versos e a sacudir a mesmice do momento. Ou grandes poetas de ontem - então de sempre - rompem sua própria rotina e renovam sua linguagem. Às vezes poetas de uma geração passam desapercebidos até que, de repente, ressurgem para atingir uma nova etapa da palavra posta em verso. É o que vejo na poesia de Jurandir Bezerra, cujo livro chamado "Os limites do pássaro" é o melhor exemplo dessa permanência.
Na realidade, tomei conhecimento da poesia de Jurandir Bezerra nos anos 50, quando a revista "Leitura", de Barbosa Mello, promoveu um concurso de poesia, de âmbito nacional, com a seguinte comissão julgadora: Carlos Drummond de Andrade, Adonias Filho e o autor destas linhas. Em mais de mil poemas concorrentes, selecionamos 23 finalistas.
Para que se tenha uma idéia do nível do concurso, esses finalistas foram: Homero Homem, Octávio Mora, Jurandir Bezerra, Affonso Romano de Sant'Anna, Antonio Fraga, Yone Rodrigues, Vitto Santos, José Santiago Naud, Nauro Machado, Eliezér de Menezes, Fernando Pessoa Ferreira, Sílvio Castro, Regina Célia Colônia, Geraldo Pinto Rodrigues, Pierre Santos, Sadala Naron, Joaquim Guerreiro Chaves, Jorge Wanderley, Paulo Renato, Maria Lúcia Alvim, Monnato Machado, Cícero Costa e Fernando Castro. Os premiados foram: 1º Homero Homem; 2º Octávio Mora; 3º Jurandir Bezerra. Os 23 poemas finalistas saíram numa edição da Livraria São José, com prefácio de Adonias Filho. Título: "Antologia dos poetas laureados no concurso de poesia de `Leitura'".
Revela Jurandir Bezerra uma preeminência de forma, aliada a uma exatitude de conteúdos, que me parece das melhores conquistas da poesia brasileira nos últimos decênios. Dir-se-ia que existe uma linha simbolista que Cecília Meireles na poesia e Clarice Lispector na prosa elevaram ao mais alto nível e que permanece em muitos dos melhores poetas e prosadores recentes.
No alvoroço, contudo, de um caminho, nem sempre consegue parte de uma geração encontrar ou criar os símbolos de um tempo. Mostra-os o poeta de "Os limites do pássaro", num estilo de límpida originalidade que já devia ter atraído a atenção do mundo literário brasileiro. Leiam-se versos da série "Poemas convergentes", desse volume: "Sinônimo de paz / não é o lago, nem o cisne, / mas teus olhos (inexplorados)". Ou: "E quando pensei / que eu era uma fonte, / tu passaste / de cântaro / na cabeça." Ou: "Eu disse à árvore: / enquanto não / amadurecem / os frutos, / dá-me a sombra." Ou este ainda: "Palavra / ou cicatriz, / a solidão / é um fruto / que o pássaro / não quis."
Não cai Jurandir Bezerra no precioso vocabular de sucesso imediato. Sua linguagem é de uma digna rigidez. Suas palavras se juntam num ritmo seguro, mesmo quando pareça haver aparente oposição entre uma e outra. Sugere Gaston Bachelard que o romance é "ação" enquanto o poema é "ato".
Num livro como "Os limites do pássaro", percebe-se o "ato" do poema, num desdobramento de temas, numa união de assuntos, numa experimentação verbal, numa retração de sons, numa utilização silábica de que resulta um sem-número de possibilidades de significados. Significados que, ao longo de seus poemas, são o que são, mas vão além. Há neles, também, um ritmo brasileiro que pode ter tido sua base na origem paraense do poeta, que, em "Criação do mito", diz: "Nossa origem é um naufrágio. / Todo náufrago é habitante / da névoa e da distância." E, dirigindo-se à musa: "Terás definitivamente / a forma que quiseres / mulher ou arco-íris."
Sabemos que a poesia é a primeira linguagem do homem, que falou ritmicamente antes de falar em prosa. Acentue-se: a poesia foi primeira, primária, primeva, primitiva. Daí a importância do poeta que de vez em quando vai ao fundo mesmo das coisas para recuperar a força primitiva da língua. Chamei atenção para o primitivismo do verso numa análise que fiz da poesia de Heloísa Maranhão em seu "Castelo interior e moradas".
O mesmo vejo agora em "Os limites do pássaro", que tem poemas assim: "As moléculas/ da água do mar/ contêm tua nudez/ e os desígnios da chama/ e o ouro invisível/ que flutua/ nas divididas conchas. // Uma gota de sal/ agônica/ desprende-se do oceano/ e abraça/ a quilha do salgueiro/ de teu corpo. / Aleluia!"
É no uso eminentemente poético da palavra e na justeza com que insufla uma intensa força lírica em sua linguagem que a poesia de Jurandir Bezerra passa a ter um significado muito especial em nossa literatura. No "Prefácio" que escreveu para a antologia que reuniu todos os 23 poemas premiados, disse Adonias Filho: "Não sendo livro de um poeta, mas de vários poetas, é dessa variação vocacional que brota a certeza de que estamos frente a frente com a poesia."
Essa variedade, a que Adonias aludia, tornou-se patente num exame dos três poetas que se destacaram. Em Jurandir Bezerra, a avaliação da palavra poética vinha chamar a atenção para um tipo diferente de fecundar o verso, levando-o também a conter, não só emoção, mas também uma espécie de pensamento discursivo. Dizia Marlamé que a força da palavra, sozinha, inventa uma realidade superior. O fazer-poesia, em "Os limites do pássaro", apresenta uma visão do universo ao mesmo tempo em que se fixa nos objetos, nas coisas, em tudo o que tenha em si a concretitude do que existe.
"Os limites do pássaro" é uma edição da Cejup de Belém do Pará. Direção editorial de Gengis Freire, Ana Rosa Cal Freire e Maria Lúcia Almeida. Prefácio de Fagundes de Menezes, capa de Ethevaldo Cavalcante.
Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro) 27/09/2005