Pela décima vez consecutiva (foi lançado em novembro de 1993), chega o movimento "Paixão de Ler" a uma abrangência que engloba toda a cidade numa série de iniciativas que aproximam crianças e adultos do livro como objeto mágico e do hábito da leitura como necessidade básica do ser humano. É principalmente através do livro que saímos de nós mesmos porque neles se acha a raiz inteira do pensamento e da emoção: a palavra. Não só a palavra pura e simples (pensada ou falada), mas a palavra escrita, que preserva a memória dos tempos e das pessoas.
Lançando a semana da leitura, houve cerimônia ontem à noite, na Academia Brasileira de Letras, com a presença do Secretário das Culturas da Cidade do Rio de Janeiro, Ricardo Macieira, do secretário-geral da Academia Ivan Junqueira (o presidente, Alberto da Costa e Silva, está em Passo Fundo, RS, participando de evento literário) e de outras autoridades.
Todos falaram sobre a campanha, tendo o quarteto de cordas da Universidade Federal Fluminense apresentado um programa com destaque de peças de Villa-Lobos. A "Paixão de ler" deste ano é dedicada ao centenário de nascimento de Carlos Drummond de Andrade. As vizinhanças da Academia Brasileira de Letras e outros pontos da cidade ostentam galhardetes alusivo à data. César Maia e Ricardo Macieira inauguraram uma estátua em tamanho natural do poeta, figurando-o sentado num banco por ele usado em vida.
Durante várias semanas houve atos e representações alusivos ao poeta em todas as bibliotecas da Prefeitura e, a partir de Itabira, onde nasceu, uma série de homenagens à sua obra e à sua presença, como a do Ministério da Educação e dos vários jornais em que permanentemente colaborou.
Já muito se discutiu sobre a preeminência da ficção na leitura da maioria das pessoas em todo o mundo. A propósito dessa preferência, vale a pena transcrever as palavras que Jean Guitton escreveu em seu útil livro "O trabalho intelectual":
"É necessário ler romances para conhecer o sentido de nossa vida e das vidas dos que nos rodeiam, sentido que o embrutecimento cotidiano nos oculta. É necessário ler romances para penetrar em meios sociais diferentes do nosso e encontrar, ali, sob a diferença de costumes, a semelhança da natureza humana; para estudar, como num laboratório, de um modo concreto e sem as transposições da moral, os problemas fundamentais: o do "pecado", o do "amor", o do "destino"; para enriquecer, enfim, a própria vida, com a substância e a magia de outras existências."
Menos primitiva do que a poesia, está, porém, a arte do romance mais perto do homem que vive acontecimentos e que, em geral, não consegue ter o vislumbre da iluminação poética e só conhece a vida sob a forma de desenvolvimento, de corrente de fatos, de incidentes que, como água que escorre, seguem uma estranha e, às vezes, desconhecida lei de gravidade moral.
Queremos acrescentar, a esta série de considerações, nossa convicção de que existe, na obra de arte, uma realidade própria. Nada pode ser mais popular, mesmo entre adolescentes, do que aventuras de Ulisses ou de Dom Quixote. E suas histórias são das mais bem contadas no mundo.
Contudo, a simplicidade em arte é algo de conquistado, de conseguido e dificilmente alcançado. É necessário um longo caminho - muitas vezes entre formas aparentemente herméticas - para que um artista aprenda a se despir do inútil e alcançar o essencial.
Diz Huxley, em seu ensaio "The doors of perception", que a memória é seletiva. O que a memória faz, não é guardar, mas esquecer - esquecer o que deve ser esquecido. Ao tentar uma obra de arte, ao desejar intensamente realizá-la, o homem parece também ter coisas em demasia a dizer, a transmitir.
Sua dificuldade e sua vitória estarão em selecionar cuidadosamente o que irá fazer parte de sua mensagem. No romance, essa linha de simplicidade, esse fio escorreito de narrativa, em que personagens assumem e vivem, na força de cada um, os mais diversos aspectos da vida, contém os elementos que tornam o mundo ficcional uma paisagem ao mesmo tempo real e densamente humana, capaz de sacudir os que dela tomam conhecimento. E, embora possam, as palavras que vou transcrever, sugerir conclusões precipitadas, desejo citá-las porque há uma sadia afirmativa do óbvio nesta frase de Joubert:
"É tanta a suprema beleza deste mundo que nomear bem, e em espírito de verdade, o que nela existe, designá-lo com exatidão, bastaria para criar um belo estilo e para fazer um bonito livro".
O que a "Paixão de ler" deseja é, por isso, transformar a leitura num hábito normal de nossa gente, fazer com que, através do que lê, possa o leitor brasileiro alcançar o enriquecimento da própria vida, o aperfeiçoamento de si mesmo e a consciência de sua posição no mundo e no País.
Tribuna da imprensa (Rio de Janeiro - RJ) em 06/11/2002