Portuguese English French German Italian Russian Spanish
Início > Artigos > A outra América Latina

A outra América Latina

 

Ninguém discutirá que o maior trunfo até agora do Governo Lula é o do novo protagonismo internacional do Brasil. Largou-se, de vez do Prata, empolgou a América do Sul, chega até à mediação das Farc, contém e apóia Chavez, e se lança ao maior desdobramento intercontinental. Mas fica fora de tudo isso o México e este novo portento que, na prática, criou uma condição cada vez mais bipolar - senão contraditória - nesta latinidade do novo mundo. Tem demorado o contato do presidente com esta Norte-América talvez a esperar a mudança do Governo Fox, e a eventualidade de que seu amigo de décadas, Cuauhtémoc Cárdenas, represente um outro caminho entre o PRI e o liberalismo de Salinas, herdado pelo atual regime. Ou que dependa o futuro do avanço do prefeito da megalópole, López Obrador, figura também a ganhar uma outra dimensão de identidade e mobilização que a do populismo ou das máquinas de poder em que se cristalizou a enorme força sindical do país.


De toda forma os contrapontos aí estão. A enorme nação aceitou o pacto e o risco de integrar-se aos Estados Unidos e ao Canadá, que hoje absorvem 70% de suas exportações, e em plena consciência da hegemonia americana que pode ser o seu preço. Esquecemo-nos às vezes que o México já está com 110 milhões de habitantes, e numa expansão demográfica aceleradíssima, confrontada à lenta progressão dos nossos 175 milhões. Nos damos conta também, às vezes, que a sua capital é a maior megalópole do nosso tempo, com seus 25 milhões de habitantes, assegurando ao mesmo tempo ao México um fulcro identitário, sem comparação, também, na América Latina.


A supercidade é, em tudo, desmesura, num porte de problemas e também de criadora convivência, com os seus impasses inéditos. Coexiste com o tráfego perpetuamente paralisado no centro, da fila indiana dos automóveis que permite a conquista das ruas pela camelotagem. E é inumerável a seqüência dessas barracas e ofertas absolutamente idênticas, menos à espera do comprador do que a responder a este ficar na praça, ou no Zócalo, que imanta o inconsciente coletivo único da capital. As civilizações ali se superpuseram na literal destruição do Templo Maior, para construir-se, em 20 anos, pelos espanhóis, a segunda catedral do mundo, sobre os charcos em que os astecas edificaram a sua capital, obedecendo ao comando divino de edificá-la onde encontrassem a águia mordendo a serpente.


Os palácios históricos mantêm-se soberanamente aluídos, desde a arquitetônica obsessiva do próprio Cortez, nessa vocação para o monumental, que continuou no século XIX pelo implante da réplica dos Campos Elíseos, do Imperador Maximiliano, ou, no México dos anos 30, pela art deco tardia, do esplendor dos tetos Tiffany do seu Palácio das Belas Artes. O que irrompe então é esta plástica do mural, como se quisesse balizar a desmesura do país cêntrico, fortíssimo da sua cultura irradiante, autóctone, muito mais do que mestiça. O Zócalo preside o derramamento inexorável desta população que inventa novas regras de sua figuração e trânsito urbano. É impossível desocupá-lo de barracas, faixas, tendas, estrados, em que um comício se segue ao outro, conformados com a sua petrificação, instalado o protesto já como um símbolo votivo à comoção do sol ou das atuais potestades astecas.


Do umbigo cívico do Zócalo, irradiam-se as figurações mais pungentes dos ritos da busca do emprego, como da compra do nada na camelotagem. Acosta-se à catedral a fieira de carpinteiros, ferreiros, consertadores de canos, remendões, sapateiros, sentados, um a um, à frente a mochila das ferramentas e o anúncio da especialidade entregues à fatalidade do excesso de competição. Mas é no meio da rua que a busca agressiva e alegre da féria do dia é a dos mariaches, interrompendo o trânsito, para oferecer seus bandolins, impecavelmente vestidos, num branco e dourado de uma esbelteza de toureador. A altaneria da proposta pelos níqueis da hora é de quem pode estar a limites desta mendicância espectral das nossas megalópoles, e tão menos perceptível num país que vive com a sua demasia humana e não a cancela. Não se mira, se reproduz, inclusive, no rastro quilométrico dos balcões dos penduricalhos e vidrilhos infinitos, no país que faz da vaidade do adereço rebuscadíssimo, o remate da população homogênea, e a buscar a diferença sutil e indiscutível, que não dispõe do panos de fundo, vário, da coexistência multiplicada de etnias.


A primeira cidade do mundo é também a que apresenta, sem dúvida, o maior número de museus e neles é a própria arquitetura que começa por definir a importância dada ao espaço plástico e à sua inscrição na paisagem. O recentíssimo Museu Rufino Tamayo faz quase da surpresa das suas formas uma concorrente à exposição que apresente. E nos fins de semana, como neste mês de maio, é de mais de quilometro a fila dos mexicanos que se aperta - entradas pagas - para ver a mostra sobre os faraós no Museu de Antropologia.


Esta fusão mexicana como a liturgia originalíssima da própria identidade extrema-se na romaria perpétua ao Santuário de Guadalupe. São quilômetros de marcha, onde a ginga das pernas dos índios de Chiapas ou de Oaxaca termina no centro da nova Catedral, de zimbório a se abrir, por inteiro, durante a missa, num sincrético ritual da luz, juntando a invocação à Virgem ao aplacamento cósmico, buscando revigoramento celebratório continuado, frente ao maior dédalo urbano de nosso tempo.


A explosão demográfica não mudou de palco no Zócalo. Exacerbou a sua história forte e levou-a a uma nova praça, no refazer as miradas da ágora clássica, ou das praças da Renascença, no relacionamento do serial estrito, no fugacíssimo em que a camelotagem não mais se destaca, nem mesmo compete, aceitando o jogo da fatalidade de quem escolhe, entre mil, a mesma coisa. A supermegalópole está criando um novo espelho identitário, em que o mesmo se ancora em coreografias da resignação, como permite o país da festa, tal como, simetricamente, da cultura da morte. O Brasil reparte com o México o ter uma das três maiores cidades do mundo. Mas até onde São Paulo é o reverbero e a prospectiva do país? Falta-nos um Zócalo, e sua vastidão criativa para dar todo o porte à explosão da nossa identidade.




Jornal do Commercio (Rio de Janeiro) 03/06/2005

Jornal do Commercio (Rio de Janeiro), 03/06/2005