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Os donos da terra

 

Andamos sempre em busca da verdade. Ou de uma verdade. Queremos saber quem somos, por que somos, de onde viemos, para onde vamos. Fazemos questão de atingir um conhecimento, que seja o mais completo possível, de nós mesmos. Num País formado, como o Brasil, de várias correntes populacionais, de cores diferentes, de religiões e costumes, acostumados a alimentos definidos, típicos das regiões de onde vieram, a urgência de sabermos tudo é maior e mais urgente.


 


Fixando-se nos Estados do Rio de Janeiro e São Paulo, consegue Eduardo Fonseca Jr., em seu livro "Brasil mestiço", traçar um panorama abrangente dessas regiões. A posição nativista do autor aparece com vigor em cada trecho do livro, no qual insiste em que tenhamos consciência do muito que os donos primitivos da terra - os vários grupos de indígenas com os quais erguemos este País - deixaram para nós, obrigando-nos a uma fidelidade a essas raízes. O fato de que somos "mestiços" diz Eduardo Fonseca Jr., "impede qualquer segregação ou discriminação racial".


 


Nos tempos da Semana de Arte Moderna de 1922, tornou-se conhecido o grito de guerra de Oswald de Andrade "Tupi or not tupi". Houve mesmo, nos anos 20 e 30 do século XX, uma tese de que devêssemos adotar o tupi como a língua oficial do Brasil ao invés do português. Muito brasileiro já teve, em Portugal, a experiência de não ser entendido por empregar palavras tupis que fazem parte de nosso dia-a-dia.


 


O autor deste artigo já narrou o acontecido com ele e sua mulher Zora num hotel de Lisboa. Tendo perguntado a Zora o que pedir como café da manhã, dela ouvir a resposta: "um mingau de aveia". Fez o pedido à cozinha do hotel. Meia hora depois como nada acontecera, reclamei, o que fez o responsável pelo assunto subir ao quarto e dizer: "consultei o dicionário que temos na cozinha, não encontrei a palavra `mingau'.


 


Telefonei para o cozinheiro do Estoril, ele tampouco sabe o que é `mingau'". E, dirigindo-se a Zora, perguntou como se fazia um `mingau'. Ela explicou e ele entendeu: "ah, madame quer papas d'aveia". "Mingau" aparece nos dicionários brasileiros como "palavra tupi".


 


Claro está que não estamos desejando que adotemos o tupi e abandonemos o português, mas Eduardo Fonseca Jr. tem razão em lutar para que reconheçamos a dívida, inclusive lingüística, que temos para com os primitivos habitantes do Brasil. Sua posição vai, contudo, além porque faz também um levantamento da influência africana, vivíssima, na cultura brasileira. As palavras iorubás, por exemplo, para citar uma delas que, por causa das religiões africanas que se tornaram afro-brasileiras, são de uso normal em muitas regiões do País. Como a palavra "agô", usada normalmente na Bahia, que quer dizer "dá licença".


 


A arqueóloga e geóloga Maria Beltrão, em seu prefácio do livro "Brasil mestiço", diz: "Eduardo escreve com a liberdade do apaixonado por seu País. Apresenta e mescla o ontem com o hoje, partindo deste como quem olha por uma janela para descrever a imagem que está à sua frente. Não hesita em ver, hoje, os desdobramentos de ações e/ou decisões tomadas ontem pelos governantes que estavam à frente da nação brasileira. As marcas desse tempo e desse espaço, aos olhos de Eduardo, são facilmente visíveis para não dizer gritantes".


 


Completando o teor positivo da influência do índio brasileiro na vida geral do País depois de aqui chegados os europeus, lembra o autor os testemunhos de muitos que estiveram no Brasil naquele tempo antigo, inclusive o de Pero Vaz de Caminha que assim descreveu uma índia Pataxó: "e uma daquelas moças era tão bem feita e tão redonda e sua vergonha tão graciosa, que a muitas mulheres de nossa terra vendo-lhes tais feições fizera vergonha por não teram as suas como as dela".


 


Já Hans Staden, diante de uma índia Tupinambá, usou as seguintes palavras: "ora, as índias brasileiras são mulheres tão formosas ou mais do que as européias".


 


"Brasil mestiço: origens raciais brasileiras", de Eduardo Fonseca Jr., tem a égide da Editora Borrelli. Prefácios de Maria Beltrão e Ricardo Cravo Albin. "Orelha" de Lairton Gomes Goulart. Capa de Carlos Verardo. Quarta de capa da modelo Tatiana Fernandes Guimarães. Produção gráfica de Josy Garcia e Alexandre Rebello. Os fotógrafos Jesco, Pedro Rezende e Renata Brito contribuem para o livro com fotos de indígenas de várias partes do Brasil.


 


Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro) 10/10/2006

Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro), 10/10/2006