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Os desafios da liberdade de expressão

 

O século 20, tido como o período de maior liberdade que a sociedade humana já viveu, passou décadas debaixo da ditadura e da censura -talvez mais tempo até sob a opressão do que na plenitude democrática. Crucial nessa luta é a liberdade de expressão, tema que continua suscitando polêmicas e discussões até hoje.


Não se deve confundir liberdade com liberalidade ou até libertinagem de imprensa. A imprensa - denominada o quarto poder, depois do governo, do clero e do Exército - nem sempre está a salvo de críticas. Já em 1920, numa conferência agora lançada em livro, "A Imprensa e o Dever da Verdade", Rui Barbosa declarava, falando com endereço certo: "Um país de imprensa degenerada ou degenerescente é, portanto, um país cego e um país miasmado, um país de idéias falsas e sentimentos pervertidos, um país que, explorado na sua consciência, não poderá lutar com os vícios que lhe exploram as instituições".


"Todos têm o direito à liberdade de expressão e de opinião", estabelece, no seu artigo 19, a Declaração Universal dos Direitos do Homem. No Brasil, desde a Independência, todas as Constituições (excetuada a de 1937, do Estado Novo) garantem a liberdade de imprensa. A Constituição de 1988, em vigor, assegura no parágrafo 1º do artigo 220: "Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embargo à plena liberdade de informação jornalística".


Tudo bem no papel, mas na prática as coisas são diferentes. O clientelismo e o poder econômico são os piores inimigos de uma imprensa livre. "A imprensa manda no povo e o capital manda na imprensa", já dizia em 1883 o sociólogo Henry George.


A concorrência e a luta pelas vendas provocaram uma profissionalização a fórceps em nossa imprensa, a partir do fim da ditadura militar. Mas não se pode omitir que os grandes interesses comerciais ainda influem, com grande peso, nos bastidores da notícia. Mesmo assim, pudemos ver com satisfação que, na maioria das vezes, nas décadas recentes, a imprensa tem atuado como uma máquina bem lubrificada a serviço da verdade e do bem comum.


Um dos episódios mais marcantes da liberdade de expressão foi o caso Watergate (1972-74), em que dois repórteres do "Washington Post", apoiados por seus editores e até pela proprietária do jornal, foram até o fim na sua investigação, desmascarando a rede de intrigas do homem mais poderoso do mundo, Richard Nixon, presidente dos Estados Unidos, e provocando o seu impeachment. Vinte anos depois, tivemos uma reedição do "Gate" entre nós, o Collorgate, quando Pedro, o irmão do então presidente, denunciou à revista "Veja" todos os meandros do esquema PC, conduzindo ao impeachment de Fernando Collor de Mello.


No início era a palavra, mas a força do rádio levou à criação da diferença entre a "imprensa falada" e a "imprensa escrita". Com o advento da TV surgiu a "imprensa televisionada" ou, pior ainda, "televisiva". Essa terminologia grotesca, se não ridícula, acabou substituída por um conceito mais "moderno", importado da cultura anglo-americana por comunicólogos e publicitários -o de mídia, que abrange o conjunto dos meios de comunicação de massa. Curiosamente, a palavra original é latina: "media", plural de "medium" (designando meio de comunicação). "Media", pronunciado em inglês como mídia, entrou assim, aportuguesado, em nosso vocabulário (outra curiosidade é a existência do mídia, o profissional de publicidade que trata das relações com os veículos de comunicação).


O termo mídia hoje abrange não só o conjunto dos meios de informação e comunicação como todo procedimento técnico que permita a distribuição, difusão ou comunicação das obras intelectuais escritas, visuais ou sonoras. Por tudo isso, mais do que um quarto poder, a mídia se tornou quase uma espécie de deus, um polvo que envolve praticamente toda a sociedade humana com seus longos e múltiplos tentáculos.


Um chavão que reflete uma verdade absoluta é a frase "a liberdade de um indivíduo termina onde começa a do outro". James Fenimore Cooper, com a sua sabedoria de indigenista, já dizia em 1838: "A imprensa, como o fogo, é um excelente criado, mas um mestre terrível". Os desastres que podem advir do mau uso da mídia são incalculáveis.


Dois exemplos recentes estremeceram de certa forma as relações entre Brasil e EUA: a "lambança" do correspondente do "New York Times" Larry Rohter, primeiro ao extrapolar da sua função e fazer uma matéria sensacionalista sobre supostos hábitos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva; segundo, quando flagrou garotas de Ipanema obesas, numa reportagem de acentuado mau gosto, sem mencionar a total falta de importância jornalística. As garotas -nem tão garotas assim- eram turistas checas cinqüentonas, que declararam sua intenção de processar o repórter, o fotógrafo ou a própria publicação. Além de um pedido oficial de desculpas, o "New York Times" fez uma reparação na forma de uma reportagem especial laudatória sobre o Rio de Janeiro em seu caderno de turismo.


Se na imprensa, no rádio e na televisão os desmandos são mais passíveis de contestação e reparação, o mesmo não ocorre na internet, um espaço totalmente incontrolável. Porém isso já é outra história...


 


 


Folha de São Paulo (São Paulo) 27/04/2005

Folha de São Paulo (São Paulo), 27/04/2005