Portuguese English French German Italian Russian Spanish
Início > Artigos > Os 400 anos do padre Vieira

Os 400 anos do padre Vieira

 

É um excelente pretexto para resgatar textos inéditos da obra desse grande orador, além da realização de eventos alusivos ao fato


EM SESSÃO da Academia Brasileira de Letras, o médico e escritor Moacyr Scliar, cujo último livro "O Texto, ou: A Vida" faz muito sucesso, chamou nossa atenção para uma efeméride de vital importância na cultura brasileira: a homenagem devida à memória do padre Antônio Vieira.


Em fevereiro de 2008, comemora-se o quarto centenário do seu nascimento, em Lisboa (Portugal), excelente pretexto para resgatar textos inéditos da sua obra, além da realização de eventos alusivos ao fato, no Brasil e em Portugal.


A vida e a obra do grande orador em nosso país têm sido objeto de muitos trabalhos literários, alguns produzidos com base nos nove anos em que ele viveu no Maranhão. Quem visita o convento das Mercês, em São Luís, pode conhecer o púlpito de onde Vieira falava ao povo, enunciando os seus admiráveis sermões.


Crítico da metrópole em relação à colônia, foi um defensor da liberdade religiosa dos judeus e, ao se contrapor à Inquisição, acabou preso por 813 dias "num covil apertado e escuro", um sertão frigidíssimo, como costumava se referir ao clima de Coimbra.


No livro "Padre Antônio Vieira e os Judeus" (Imago, 2004), procuramos exaltar esse lado da personalidade do religioso, prestando-lhe merecido reconhecimento. O historiador Hernâni Cidade deixou clara essa posição: "O que portanto prejudicou Vieira foi a inclinação para a gente hebréia que os inquisidores sentiam manifestada até a atribuição a d. João 4º da futura incorporação, no reino de Cristo, das dez tribos perdidas de Israel".


Pregador corajoso e lúcido, Vieira identificou-se com o Velho Testamento, do qual extraiu importantes contribuições aos seus trabalhos. Mereceu de Mendes dos Remédios o seguinte comentário: "Defesa pronta, desassombrada, eloqüente, vigorosa, linguagem forte, lógica incisiva e fulminante. Esse escrito (proposta feita a d. João 4º, em que se lhe representava o miserável estado do reino e a necessidade que tinha de admitir os judeus mercadores que andavam por diversas partes da Europa) estalou como um trovão... O que não devia causar menos espanto, apreensão e temores era o saber-se que o paladino dos cristãos-novos e autor daquela proposta era um jesuíta, homem então na pujança da vida e do talento, bem-aceito na corte, adorado nos meios aristocráticos e devotos da capital, intimorato, generoso, e cujo saber e habilidade não conheciam limites".


Sem ser direto na crítica ao Tribunal do Santo Ofício, ainda assim despertou reações contrárias por defender posições favoráveis aos que constituíam a "gente de nação", como eram os judeus então conhecidos.


Fiel ao Brasil, "a quem, pelo segundo nascimento, devo as obrigações de pátria", voltou a Portugal para lutar por medidas que pusessem fim ao cativeiro dos indígenas.


Aproveitou a ocasião para pregar em Lisboa o "Sermão do Bom Ladrão", diante de d. João 4º e sua corte. Vieira começou dizendo que a capela Real seria o local mais adequado para o seu discurso, porque pretendia tratar de questões ligadas à majestade régia, e não à piedade.


Podemos bem imaginar o desconforto do auditório -formado por juízes, ministros, conselheiros da coroa e os mais altos dignitários do reino- forçados a ouvir Vieira falar obsessivamente de ladrões e ladroeiras.


Já a tese inicial é implacável: "Nem os reis podem ir ao paraíso sem levar consigo os ladrões, nem os ladrões podem ir ao inferno sem levar consigo os reis. O que vemos praticar em todos os reinos do mundo é, em vez de os reis levarem consigo os ladrões ao paraíso, os ladrões são os que levam consigo os reis ao inferno.


Prosseguirei com tanto maior esperança de produzir algum fruto quanto vejo enobrecido o auditório de tantos ministros de todos os maiores tribunais, sobre cujo conselho e consciências costumam se descarregar a dos reis".


Conselheiro do rei, a ele sugeriu que fossem vencidas as infidelidades então vigentes "com a espada do judaísmo, assim como os mesmos judeus, quando Deus os governava, conquistaram a terra da promissão". Foi incompreendido. Tivesse sido outra a reação, na época, a história de Portugal poderia ser escrita de maneira diferente.


Folha de S. Paulo (SP) 10/9/2007