Para onde vai a visão americana depois da vitória democrática, diante da declaração dos experts militares de que será, pelo menos, de dez anos a permanência das tropas no Iraque? E como reagirá Washington à proposta já da Europa mediterrânea, de juntarem-se a França, a Espanha e a Itália, por forçar uma solução para o impasse do Oriente Médio, independentemente do que pense o Salão Oval? Ou, sobretudo, e frente às fendas abertas à hegemonia, pela derrubada de Rumsfeld, o que se pode esperar da passagem do Irã à ofensiva, numa concertação internacional, convidando a Síria, o Iraque - e, especialmente, a Turquia - para a estabilização da área?
Estas perguntas afloraram, à esteira da última reunião das Nações Unidas, sobre a Aliança das Civilizações que ora vem de se encerrar, em Istambul, como um dos últimos atos de Kofi Annam e, na envergadura de sua perspectiva sobre o que muitos já vêem como uma inexorável "guerra de religiões". A conferência, reunindo 20 especialistas de todo o mundo, e entre os quais o ex-presidente do Irã, Mohamed Khatami; o Arcebispo Tutu e o ex-diretor geral da Unesco, Federico Mayor, assentaram ainda a premissa de que o impacto entre o Islã e o Ocidente continuava no foro político, mais do que no contexto cultural, e de que a formação de blocos de ação internacional, dentro das suas características geopolíticas, seria o melhor critério para fugir às fatalidades da hegemonia, dentro do mundo de após o 11 de setembro. Ou melhor, do risco de uma "civilização do medo", que anteciparia o conflito de credos, e a só ser confrontada enquanto é tempo ainda por uma vigorosa política de alianças regionais, pela convivência na diferença, superando os fundamentalismos de luta contra os "eixos do mal", consoante o ideário de Rumsfeld e dos neoconservadores na Casa Branca.
A conferência não se iludiu, entretanto, quanto à promessa imediata de novos rumos nítidos nascidos da força democrática emergente dos Estados Unidos. Foi, na verdade, uma vitória do centro da legenda, não alimentando dúvidas quanto à manutenção da política externa e da presença militar além-Atlântico, em novo mandato presidencial.
A opção parece marchar mais para uma gestão competente do conflito, do que para a retirada imediata, acompanhando a síndrome da Coréia ou do Vietnã. E democratas e republicanos, por sua vez, repartem a mesma falta de convicção nos poderes da ONU de assumirem, de fato, a gestão de uma política de paz num mundo exposto a um terrorismo anônimo, múltiplo, onde um clima político insurreicional independe de governos, nos seismos de protestos subseqüentes à queda das torres e às invasões do Afeganistão e do Iraque.
A se aceitar a determinação, basicamente política, do conflito Ocidente-Islã, há também que, para vencer o impasse, aceitar as regras do jogo da convivência pacífica internacional, apoiada no suposto da democracia. Tal inclui a conversão de grupos que recorreram à violência ao ganho da voz política eleitoral, como blocos e partidos vencedores nas urnas nessas áreas críticas hoje à paz mundial. Aí está o caso do Hamas, na Palestina, ou em vias de uma legitimação idêntica, trazida do Hezbolah como força reconhecida ao equilíbrio do Líbano ora em nova emergência política.
A Aliança das Civilizações foi nítida em distinguir entre os movimentos de resistência contra a situação colonial, e buscando a representação política, de grupos sistematicamente vinculados ao confronto sem retorno como o Al-Qaeda. E a distinção se torna cada vez mais crucial, na área onde nacionalismos reprimidos contra uma dominação imemorial continuada, com o terrorismo no conflito sem precedentes no século XXI, frente à velha história dos Impérios ou das colonizações ocidentais.
O que as eleições de 7 de novembro nos Estados Unidos demonstraram, mesmo conformando a longa retirada do Iraque, é o quanto os princípios do Patriot Act, de aceitação da tortura, ou do regime dos prisioneiros de Guantánamo, contradizem a essencial vocação democrática libertária do país de Jefferson ou Roosevelt. Os direitos humanos se voltam a fazer ouvir contra as hegemonias da "civilização do medo". E não é sem razão que Nancy Pelosi, a nova speaker do Congresso, é também uma campeã desta plataforma por onde começa o desarme da "guerra de religiões". A evitá-la, o diálogo começa pelo universal de reconhecimento desses direitos e da defesa da diferença é, hoje, condição primordial para que o mundo hegemônico não faça da história uma memória subversiva.
Jornal do Commercio (RJ) 24/11/2006