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O vernáculo pede socorro

 

Os acadêmicos Evanildo Bechara, Arnaldo Niskier e Josué Montello desfraldaram no plenário da ABL uma bandeira honrosa e nobre: a bandeira da defesa da língua portuguesa. Porque a verdade é que ela está correndo sérios riscos, desde quando, nos currículos escolares, foram extintas disciplinas que enriqueciam a cultura humanística dos nossos estudantes.


Antes, foi a vez do latim, que é a nossa origem e a nossa matriz. Depois, neles foi riscado o ensino do idioma francês. Agora, estão abolindo o ensino da literatura, com o banimento das antologias literárias. Já existem gramáticas, e até mesmo professores, que estão cortando a segunda pessoa do singular e do plural - o tu e o vós, na conjugação de alguns verbos.


A nossa língua - seja a língua falada, a língua escrita, a literária, a padrão, a poética, ou a exemplar - já enfrentou muitos perigos. Antes, era a ameaça dos francesismos. Depois, foi a invasão americana, no embalo do cinema e, agora, da televisão. Em seguida, a gíria popularesca, vulgar, limitada e cômoda.


Parece até que estamos diante de uma ofensiva orquestrada contra o idioma e a obra de Camões, Gil Vicente, Vieira, Bernardes, Herculano, Garret, Eça e Camilo. Acontece que os países de língua portuguesa - (Brasil, Portugal, Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné-Bissau, São Tomé, Príncipe e, agora, Timor Leste) - para não falarmos nas comunidades portuguesas existentes nos Estados Unidos e no Canadá, esses países já totalizam um universo de duzentos e trinta milhões de pessoas, que falam o nosso idioma comum.


Na Academia da Latinidade, portugueses, espanhóis, franceses e italianos têm evidenciado seu empenho em aliar-se aos brasileiros, na defesa comum dos idiomas neolatinos, ante a invasão hegemônica dos anglo-saxões.


Se alguém tiver alguma dúvida sobre este perigo, basta ir até a Barra da Tijuca, que, com seus letreiros luminosos e os nomes dos seus edifícios, já está até sendo conhecida como a "Miami brasileira."


Existe inclusive a famosa história narrada por Millor Fernandes, que se recusou a ir à Barra da Tijuca, explicando que já tinha ido a Miami. Basta relembrar também a ignorância e os erros cometidos na redação de textos para os vestibulares universitários e na grafia de testes para os concursos públicos, com total desconhecimento do léxico e da gramática, na sintaxe, na regência e na concordância.


Num recente concurso realizado pelo Tribunal de Justiça aqui do Rio de Janeiro, de 838 candidatos inscritos, apenas 55 foram aprovados para Juízes de Direito. Outros 783 candidatos foram reprovados, sobretudo na prova de Português.


Não era à-toa, nem por acaso, que os vitoriosos conquistadores na Antiguidade - como aconteceu com Alexandre, na Grécia; Júlio Cesar em Roma e Aníbal em Cartago - levavam sempre, com suas tropas, o idioma que pretendiam colocar à disposição dos povos vencidos, como veículo de sua administração e de sua cultura. Porque todos nós sabemos que a língua pátria é uma instituição que fala de perto com a independência, a soberania e a integridade nacionais.


Até agora, ao longo de mais de cinco séculos, nós, brasileiros, temos conseguido resguardar a unidade do nosso País - através de um mesmo alfabeto, falado, do Acre ao Rio Grande do Sul, com pequenas variações de dialetos e de sotaques, mas sem prejuízo da identidade e da coesão idiomáticas, graças à ação dos bandeirantes, dos jesuítas Anchieta e Nóbrega e das etnias que construíram esta Nação.


Por um lado, conforme já advertiram os acadêmicos Sérgio Rouanet e Eduardo Portella, devemos estar suficientemente vacinados para evitar os exageros de um nacionalismo xenófobo, que construa casamatas para defesa do nosso idioma.


Mas, por outro lado, desde que, no dia 28 de janeiro de 1897, foi inscrita no art. 1º dos nossos Estatutos, a cláusula pétrea da cultura da língua e da literatura nacional - assinada por Machado de Assis, Joaquim Nabuco, Rodrigo Octávio, Silva Ramos e Inglês de Souza - a Academia Brasileira de Letras assumiu uma responsabilidade muito grande, na salvaguarda e na sobrevivência dessa língua.


Pois ela é um patrimônio sagrado, que recebemos, entre outros, de Machado, Nabuco, Ruy, Alencar, João Ribeiro, Humberto de Campos, Euclides, Bevilaqua, Laet, Alceu, Rosa, Laudelino, Celso da Cunha, Barbosa Lima, Athayde, Houiass e Aurélio - recebemos deles todos um patrimônio sagrado, que temos de transferir, enriquecido e forte, às futuras gerações.


É a nossa competente lingüística - tornada um instrumento de expressão e integrada por componentes estéticos e literários - que se consolidou, entre outros, com José Lins do Rêgo, Paulo Setúbal, José Américo, Gilberto, Genolino e Jorge Amado, Viriato Corrêa, Vianna Moog e Otávio de Faria.


E é também a nossa poética, que se consagrou com Álvares de Azevedo, Gonçalves Dias, Casimiro de Abreu, Castro Alves, Bilac, Olegário, Cassiano, Bandeira e João Cabral.


Este movimento de alerta e de advertência da ABL, que o debateu judiciosamente no seu plenário, bem merece o apoio da universidade, da imprensa e da sociedade brasileiras, bem como da Academia de Ciências de Lisboa, para que esta bandeira não caia de nossas mãos.


Assumindo os sagrados deveres diante deste assunto, no cumprimento de um imperativo da Academia, o presidente da Casa, Acadêmico Alberto da Costa e Silva, designou uma Comissão constituída dos Acadêmicos Eduardo Portella, Sérgio Corrêa da Costa, Carlos Heitor Cony, Arnaldo Niskier e Evanildo Bechara, que já estão debruçados sobre este problema.


Do seu parecer e dos debates, travados durante várias horas na ABL, restará um documento oficial, a ser apresentado ao Governo e ao Congresso, (talvez um dos raros documentos oficiais que a Academia já emitiu até agora, ao longo dos 105 anos de sua existência), no qual ficará bem definida a nossa atual posição na defesa da língua e da literatura nacional. Porque, afinal de contas, o vernáculo português aí está pedindo o nosso socorro e nós temos o histórico e estatutário dever de socorrê-lo.


Antes que seja tarde demais.


 


Jornal do Commercio (Rio de Janeiro - RJ) em 05/11/2002

Jornal do Commercio (Rio de Janeiro - RJ) em, 05/11/2002