Felizmente, enquanto escrevo, o presidente não está no Brasil, mas em febricitante jornada de trabalho na Inglaterra e não pode ver na televisão - eis que jornais ele proclama não ler - o Exército mobilizado para recuperar dez fuzis roubados, que estariam escondidos nas favelas cariocas. Mais pessoal, acho eu, que o enviado ao Haiti, o qual é um pouquinho mais extenso que o Rio de Janeiro e, afinal, é o Haiti, país abaixo de nós (sei que os de má vontade dirão que todo mundo ficou acima, mas com má vontade não se chega a lugar nenhum) na lista dos que menos cresceram e cheio de estrangeiros. Aqui o espetáculo do crescimento não tem sido propriamente emocionante, mas, sabem vocês como são essas coisas de show business . Sempre pode dar algo errado e, além disso, como afirmou o presidente há alguns dias, o Brasil não tem pressa. Quem tem pressa é quem tem fome, segundo também palavras dele, e isso vem sendo exemplarmente tratado, como poderá testemunhar qualquer pequeno empresário que receba o bolsa-família, juntamente com funcionários municipais parentes dos prefeitos, política social avançada, que vem sendo implantada em todo o nosso imenso Brasil.
Ele teve uma viagem feliz a Londres. Sabe que, numa performance irretocável, a oposição vem trabalhando com rara eficiência para facilitar sua reeleição. Deu uma bofetada com luva de pelica nas elites, que ficam só saindo na “Caras”, enquanto ele janta com a rainha da Inglaterra, que, aliás, não é elite, é somente rainha mesmo, pois lá na Inglaterra, não sei se vocês sabiam, a rainha reina mas não governa, igualzinho a ele, que preside mas não governa, ou só governa se interessar. E evidenciou-se a verdade contida nas ironias constantemente perceptíveis, quando ele fala sobre sua educação formal. Se ele soubesse inglês, teria reagido a qualquer comentário desairoso sobre a Amazônia, afirmando que um presidente não pode saber de tudo o que acontece no seu país e que Amazônia é essa, tirem esse bicho daí, nunca se ouviu falar desse problema em sua presença. Mas não sabia e não pôde fazer nenhum de seus festejados improvisos, havendo pronunciado exemplarmente o discurso preparado para ele, como faz qualquer presidente. Seremos informados em breve, através dele mesmo, que nunca se visitou tão bem uma rainha da Inglaterra em toda a história deste país e ainda está para nascer quem visite.
Mas faço enorme digressão, antes mesmo de entrar no assunto que me motivou, entre tantas notícias que merecem comentários e me entopem de assuntos o juízo, já de nascença meio desregulado. Falo na operação militar no Rio de Janeiro, que talvez venha a ser conhecida, por historiadores futuros, como a batalha inicial de uma guerra que já vinha em curso, mas somente agora ganha pinta de guerra mesmo, com blindados, canhões e tudo mais. Já não temos que passar muita vergonha diante do Iraque ou do Afeganistão. Ou do próprio Haiti. Sei que tem gente satisfeitíssima com a operação e torcendo para que a tropa engrosse logo e dê uns tiros de canhão nas favelas. Se pegar em alguém da maioria, ou seja, uma criança, uma dona de casa ou um trabalhador, é chato, mas é fogo amigo, expressão que, como as frentes frias de que falam tanto os meteorologistas de tevê, não explica nada, mas torna a coisa bem mais chique, foi designação criada pelos americanos. E quem manda morar em favela? Quem sai na chuva é para se molhar e, se se for pensar em todos os prós e contras, nunca se faz nada. Metralha neles, é o que bastante gente quer e não diz por conveniência. Não afasto mesmo a possibilidade de haver quem advogue o bombardeio aéreo das favelas, contanto que seja também como os dos americanos, que dizer, “cirúrgico”. Parece que não adianta nada, pois atingem hospitais e escolas do mesmo jeito, mas adianta, sim, por fornecer explicações altamente técnicas de que a culpa, afinal, é dos atingidos, além de propiciar excelentes motivos para pedidos de desculpas, eloqüente prova de que estamos numa democracia. Só falta que dêem a ordem e que forneçam combustível à Força Aérea, que, segundo soube, anda meio a perigo nessa delicada área, pois os aviões se recusam impatrioticamente a voar sem combustível. Aliás, me dizem que andam a perigo todas as Forças Armadas, situação que ninguém pode apoiar, a não ser por preconceito e - por que não dizer? - burrice ou desinformação.
Bem, mas não sejamos pessimistas. Percebamos nisso as oportunidades criadas. Quando vi a foto de um blindado parado, se não me engano, ao sopé do morro da Mangueira (Mangueira, teu cenário é uma beleza, já se cantou), me ocorreu que a blindagem de carros é um dos setores mais bem-sucedidos da nossa economia e o Brasil detém tecnologia exportável. Por que não aproveitar, agora que a guerra já está patente, com quase tudo o que vemos no cinema, para exercer a criatividade nacional e mostrar novamente o nosso pioneirismo? Antes, se acenava para a sofrida classe média com o sonho da casa própria. Agora o sonho talvez seja mais fácil. Sou capaz de apostar que, com algumas centenas de milhões de propaganda, os brasileiros desenvolveriam facilmente o sonho do Urutu próprio. Sem armamento, a não ser em casos especiais, definidos por Medida Provisória, mas Urutu legítimo. Naturalmente, os bandidos roubariam do Exército alguns foguetes antitanque, mas acredito que a maior parte do estoque estaria suficientemente protegida para dar vantagem aos legalistas, pelo menos enquanto o inimigo não contar com ajuda interna, hipótese, que eu saiba, não investigada pelo Exército. Já pensou o gentil leitor ou a encantadora leitora na alegria de sair de casa dentro do conforto e da segurança de um Urutu do ano? Aí mesmo é que a gente vai ver que nunca um governo fez tanto pela segurança pública neste país.
O Globo (Rio de Janeiro) 12/03/2006