Há quarenta anos Guimarães Rosa nos deixava, menos de uma semana depois de haver tomado posse na Academia Brasileira de Letras. Durante os dois meses anteriores, havíamos estado juntos quase que diariamente, Jorge Amado, Rosa e o autor destas linhas. Éramos componentes da comissão julgadora do Prêmio Nacional Walmap, para romance inédito, o mais importante da época.
Nas reuniões finais, discutimos dezenas de romances que havíamos selecionado antes e relíamos alguns. Jorge Amado narra, em seu livro de memórias, "Navegação de cabotagem", como foi o julgamento. Cada jurado falava sobre os romances que mereciam destaque, as opiniões de cada um eram avaliadas pelos outros, afinal chegamos à decisão, por unanimidade, de dar a Oswaldo França Jr., por seu romance "Jorge, um brasileiro", o prêmio principal.
Os outros lugares foram conquistados, pela ordem, por Maria Alice Barroso, Otávio Mello Alvarenga, com o segundo e terceiro prêmios, sendo os quatro seguintes Benito Barreto, Ricardo Guilherme Dicke, Paulo Rangel e Paulo Jacob. A festa de concessão dos prêmios foi presidida por José Luís Magalhães Lins e Nininha Nabuco Lins.
Além de grande escritor, Rosa era um bom. Confirmava a tese de que ética e estética andam juntas e de que não se ergue uma grande obra sem uma base de bondade. A gradativa compreensão de que ele morrera deixou-nos silenciosos naqueles primeiros dias sem Rosa. Talvez eu e muitos o julgássemos de fato imortal, não somente na obra. E me pergunto de que maneira, num certo momento, de Cordisburgo, o nome já está dizendo, através das palavras da gente das Gerais, pôde surgir um João que nos justifica e faz com que o Brasil seja mais do que um simples aglomerado de Gente?
O estilo de Guimarães Rosa é uma prova de que o Brasil atingiu ponto avançado na sua "hominização". E o país chegava a esse nível, como seria natural que chegasse, através da lingüística, não a simples matéria dos professores, mas a dos criadores, a dos que inventam a realidade com palavras.
É em Guimarães Rosa que compreendo, em seu sentido pleno e total, a lingüística tal como a defende Claude Levy-Strauss, a lingüística base de um avanço da sociedade, a lingüística-estrutura de tudo, não como volta ao velho nominalismo filosófico, mas como entendimento de novas realidades - novas e ecumênicas - e como resultado de uma visão estrutural e estruturada das coisas.
O livro de Rosa que saíra antes com o título de "Corpo de baile" e teve nova edição chamada "Noites do Sertão", completa o exame de três escritores brasileiros que nos mostram em nossos aspectos mais verdadeiros e mais fortes: Machado de Assis, Euclides da Cunha e Guimarães Rosa. Um escritor do litoral e dois do Sertão, Euclides do Sertão nordestino e Rosa do Sertão do Urucuia, onde seus personagens agem. Representam os três as duas faces do País que mostram sua evidente brasilidade: a do mar e a dos que, longe dele, sonham com o mar.
No mundo fascinante do Sertão mineiro surgem as mulheres rosianas, personagens como "fomes de vida" que têm "um jeito sem pudor de encarar as pessoas", segundo explicações que Nhô Gualberto ouve e que terminam com mais esta: "Mulheres têm a idéia sem sossego..." Todos convivem com os bichos da terra: tamanduás, tatus, lobos, capivaras, jacarés ("Sono de jacaré faz parte do chão"), numa linguagem brasileira, fiel aos nossos rios, aos nossos bichos e ao nosso chão, o que nos dá, como povo e como idioma, a certeza de uma continuação. E nosso País, nosso tempo, nossas realidades, nossas palavras, também passaram a ser através de João Guimarães Rosa, imortais.
"Corpo de baile" - Edição comemorativa - 1956-2006, de João Guimarães Rosa, Editora Nova Fronteira, em estojo com dois volumes recuperando a edição original da obra e livreto com cartas inéditas de Guimarães em fac-simile, texto de Alberto da Costa e Silva (que acompanhou os trabalhos originais de edição da obra), de Paulo Rónai e nota editorial.
Tribuna da Imprensa (RJ) 16/1/2007