Portuguese English French German Italian Russian Spanish
Início > Artigos > O ritmo do verso

O ritmo do verso

 

A medida real do verso, a métrica, o ritmo, a cadência, a pulsação de um grupo de palavras dispostas com determinado jeito, enfim, tudo o que dá à poesia o seu caráter de canto, de cântico, de cantiga, de peça oral-vocabular, de monólogo cantado em silêncio, tudo está ligado a movimentos e ritmos da vida normal dos homens, a seus ritos cotidianos e a peculiaridades no exercício do seu viver a vida.


 


Na poesia grega, o verso reproduzia o percurso feito por um dançarino ao redor de um altar ou de um túmulo, e a cesura vinha a ser a marcação de metade do caminho percorrido. Levando o verso para o palco, a linha poética representava o tempo (e o espaço), que o ator consumia para atravessar todo o proscênio ou apenas um de seus setores.


 


Os tambores gregos, com seus toques binários, tinham relação com a métrica normal da poesia da época. Falando de teorias estéticas mais recentes, o poeta inglês Robert Graves faz alusão ao verso nórdico, em geral, e inglês, em particular, que surgiu da batida dos remos na água.


 


Existe, assim, um fundamento existencial - no mais amplo dos sentidos em que Heidegger emprega este adjetivo e suas variações (existenziell, existenzial, ek-sistenziell) no tipo de verso usado por um povo e, no caso, que interessa a um tempo, no verso que um poeta determinado escolha utilizar em seu poema.


 


Dos muitos livros de poesia que recebi ultimamente, destaco um - "50 Tempestades", de Wanda Lins - em que o ritmo do verso ocupa lugar proeminente. Nela tanto o ecoar da cadência vocabular como o aspecto musical das palavras escolhidas ajudam a criar um todo significativo que supera a linguagem do poema, elevando-a a uma definição da vida e seus mistérios.


 


A autora, de acordo com informação contida no livro, nasceu no Brasil e, aos 12 anos, foi para a França, onde se formou como tradutora e intérprete, tendo ali publicado em francês o livro "Monstrillons", só regressando ao Brasil muito depois. Em janeiro de 2000, recomeçou a escrever em português e "50 Tempestades" é o resultado atual desta volta.


 


Desejo citar aqui uma idéia de Paul Claudel, constante de seu livro "Réflexions sur la poésie". Segundo ele, assim como o coração "bate", isto é, palpita em movimentos mensuráveis, também o cérebro "bate", isto é, em suas "batidas", produz idéias, imagens, lembranças, noções, conceitos. Já existiria, assim, um ritmo no pensamento, de onde sairão a frase, o verso, as palavras postas numa determinada cadência.


 


Diante do livro de Wanda Lins, nos deparamos com um ritmo novo em que, inclusive (ou exclusive), os pontos de acentuação não precisam existir. O ritmo já se acha na seqüência das palavras e qualquer pausa necessária também está inserida na linguagem. Sem vírgulas ou qualquer outro sinal inútil, os versos caminham soltos, livres, como deslizando sobre um espaço aberto.


 


Como no poema chamado "Minha alma perdeu sua sombra": "Minha alma perdeu sua sombra / numa noite de lua cheia / partimos à sua procura / rodamos vales rodamos montes / atravessamos mares lares bares / a encontramos numa floresta / com ares de catedral / tinha tomado a forma de um lobo solitário / demente esfomeado / de olhar avermelhado e caninos de marfim / trilhava uma senda perfumada de sangue / a luz beirava a fosforescência / a terra suava violência / não foi fácil trazer de volta / de minh'alma a louca sombra / que me assombra e me faz dar / risadinhas mais estranhas / oriundas das entranhas / não foi fácil".


 


Voltando à imagem do palco, diga-se que Wanda Lins caminha sobre trechos da realidade, pega nas palavras e vai dando o nome a cada coisa. Sua poesia é palavra e é tempo, é matéria verbal, vocal, oral, visível, signo, sinal e é o ritmo em que se formam os versos. A poesia de Wanda Lins é uma busca, uma recherche e atinge as extensões de si mesma no aperfeiçoar a palavra, no tentar vencê-la, tê-la, retê-la, dá-la. Suas extensões se dirigem também num sentido lírico, mas esse lirismo não é apenas um adjetivo acrescido ao poema: na realidade é um novo substantivo, que amplia o significado geral de um contexto.


 


Fortes na sua simplicidade, os passos dos versos de Wanda Lins vão de um lado a outro do palco, tranqüilos e criando seu próprio ritmo, distribuindo suas palavras sobre as tábuas do caminho. Pergunta: "para que tanto / tanto sofrimento / se é para que me enterrem / talvez mesmo viva / no deserto lívido / do esquecimento".


 


Não há dúvida: temos entre nós uma nova executora do verso, que examina e depura cada palavra que usa. Como, ainda neste "Mães": "meio termo não há / mãe é tudo ou nada / é macia ou pontiaguda / cantarolante ou muda / mães constroem destinos / de breu ou de luz / mãe é casa / se não é cruz".


 


"50 Tempestades", de Wanda Lins, é um lançamento da editora Oficina do Livro. Edição eletrônica e capa de Cat Torres. Orelha de Ivan Cavalcanti Proença. Conselho Editorial de Mirian de T.F. de Carvalho e Isis Maria Célis Rodrigues.


 


Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro) 24/10/2006

Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro), 24/10/2006