Um dos grandes poetas brasileiros em qualquer tempo, Gerardo Mello Mourão (1917-2007), deixou-nos, ao morrer recentemente, uma obra que nos justifica e nos revela como povo e como nação. Livro sobre sua vida e sua obra - "A saga de Gerardo: um Mello Mourão", de José Luís Lira, estava pronto e será lançado em Fortaleza no dia 26 de abril próximo.
Não se parece, a poesia de Gerardo Mello Mourão, com a de nenhum outro poeta brasileiro, tendo alcançado um tom ao mesmo tempo lírico e épico, e que seus livros "A invenção do mar" e "O país dos Mourões" são o melhor exemplo.
E sua presença não está só na poesia, mas também na prosa, de que o romance "O valete de espadas" é o grande exemplo, ao narrar a história da caminhada de um homem (e do homem em geral) através dos símbolos que formam rumos e das tradições que, mortas ou vivas, sustêm as sociedades de cada geração.
"O valete de espadas" oscila entre o lógico e o ilógico, num difícil equilíbrio que lhe dá força e seiva. A lógica elaborada ao longo de dois milênios e meio de pensamento sistematicamente discursivo uniu-se, em "O valete das espadas", ao mítico nascido em épocas anteriores e conservado em tradições que os povos orientais - principalmente o hebreu - deixaram na memória do homem.
Há livros que participam da busca de qualquer coisa que nos livre do Tempo, com T maiúsculo mesmo, do Tempo que nos alimenta e nos mata. "O valete de espadas" participa dessa busca e dessa luta, indo além de qualquer outra manifestação literária entre nós e ingressando também no terreno do poema, o que era normal, em se tratando de um poeta como poucos tivemos depois de Castro Alves e de Jorge de Lima.
"A invenção do mar" e "O país dos Mourões" estão na vanguarda mesma da palavra transformada em poema entre nós. São de feitura inteiriça, compacta, num ritmo despojado, desatado de si mesmo, na posição do poeta que se larga, que se solta e consegue, com isto, uma impressionante unidade sintática, de que participam tanto os versos longos - de 14 e mais sílabas - como os de ritmo normal de sete sílabas, ou os que se partem em pulsações diversas e variadas.
A propósito de poesia brasileira, disse Carlos Drummond de Andrade: "Algumas pessoas pensam que eu sou o grande poeta de Minas e o grande poeta do Brasil. O grande poeta de Minas é Dantas Motta. E o grande poeta do Brasil é o Gerardo Mello Mourão. E digo "o" Gerardo, como se diz "o" Dante".
Quando chegamos, Zora e eu, à Inglaterra, onde trabalharíamos durante alguns anos, um dos escritores de minha admiração, Robert Graves, não morava mais em Londres.
Soube que, desgostoso com o ambiente londrino, mudara-se para a Espanha depois de escrever um livro de adeus chamado exatamente "Good-bye to ali that". Escolheu para morar uma aldeia espanhola situada no centro da Ilha de Maiorca e lá se achava há alguns anos. Nome do lugar: Deya, palavra árabe que significa exatamente "aldeia". Depois de ter combinado com ele, por carta, uma ida a Maiorca, hospedamo-nos no único hotel do lugar, situado em frente à casa do poeta.
Dele havia eu lido não só os poemas e romances, mas principalmente seu livro de ensaios sobre poesia "The white goddess". Durante dez dias, passamos a manhã com Robert Graves. O assunto normal desses encontros foi a poesia de nosso tempo. Ele conhecia quatro línguas da Península Ibérica: o espanhol, o português, o galego e o catalão.
Pôde, assim, falar dos poetas brasileiros que havia lido. Colocava em primeiro lugar, Gerardo Mello Mourão, dizendo: "Encontrei nele alguns dos melhores poemas que li na minha vida".
Neste adeus ao amigo de toda uma existência, Gerardo Mello Mourão, deixo aqui esse testemunho de um poeta e ficcionista como Graves, que sabia o que estava falando.
O livro de José Luís Lira é uma edição da Universidade Estadual Vale do Acaraú. Orelha de Maria Norma Maia Soares, capa de Alessandro Muratore e texto de quarta de capa do embaixador Gonçalo Mourão, filho do poeta, que diz: "... esteve bem José Luís Lira ao intitular seu livro `A saga de Gerardo; um Mello Mourão'. Na verdade, Gerardo, é um Mello Moura. Mas, como a própria obra poética que ele criou nos mostra, ser Mello Mourão, ali, significa muito mais do que pertencer a uma vasta família do Ceará Grande: significa legar para o mundo este quinhão de aventura humana que meu pai inventou, porque cantou e vem cantando".
Tribuna da Imprensa (RJ) 27/3/2007