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O pescoço de Saddam

 

O CONCEITO de guerra justa foi muito utilizado ao longo dos séculos para aventuras políticas. Kant, que era um pacifista a seu modo, achava que toda guerra "era contra a lei". Sua visão era mais legalista do que humanitária.


Bush invadiu o Iraque com a motivação de uma guerra justa. Era preventiva contra as armas de devastação em massa e ao mesmo tempo punitiva, alegando que Saddam participara dos idos de 11 de Setembro. Os fatos mostraram que não havia nem uma coisa nem outra. Nada de arma de destruição em massa e nenhum envolvimento do Iraque com os ataques terroristas nos EUA. Restaram as hipóteses de uma aventura política para legitimar sua eleição -decidida na Suprema Corte-, a suspeita de uma vingança pessoal, pois, como ele mesmo disse, "Saddam quis matar papai", e o envolvimento dos interesses petrolíferos.


Tudo isso é hoje a constatação de um brutal erro pelo qual estamos pagando, não só os Estados Unidos, com dinheiro, mas nós todos, com as fumaças de uma outra Guerra Fria, que se esboça nas declarações de Putin sobre o guarda-chuva antimísseis e em nova corrida armamentista. É o monstro nuclear renascendo.


A democracia que ia ser instaurada no Iraque, repetição do que ocorreu no Japão, jamais ocorrerá.


Ao contrário. Como repercussão colateral, a China se viu à vontade para impor-se como superpotência militar, e o Irã, grande beneficiário da invasão, viu-se estimulado a desenvolver seu programa nuclear.


Os ditadores árabes se viram livres de pressão. Com a democracia mais distante, resta a possibilidade de implantação de um Estado teocrático no Iraque comandado pelos xiitas.


Sofreu Bush um desgaste interno gigantesco na opinião pública americana, que está certa de ter pela frente um novo Vietnã. Enquanto essas conseqüências são avaliadas, verificamos que perdemos a oportunidade -que surgiu depois da queda do Muro de Berlim- de consolidar um sistema mundial de cooperação. Um mundo livre das ideologias radicais e livre da ameaça da destruição nuclear.


Os aliados dos americanos pagaram com suas cabeças a solidariedade nessa aventura: Aznar, Berlusconi e, agora, a queda branca de Blair com a desculpa da renúncia.


O julgamento de Bush perante a história será severo, e ele entra para o final do seu mandato com a comemoração diária da chegada dos corpos de soldados americanos, mortos por uma causa sem causa.


Só restou o troféu do pescoço de Saddam, um ditador execrável que não valia tantas vidas e erros.


Folha de S. Paulo (SP) 8/6/2007