Antes de mais nada, devo deixar bem claro que, com as palavras acima, apenas repito parte do título de um samba famoso e não tenciono ofender qualquer pessoa ou coletividade com um epíteto racial que alguns consideram pejorativo, no que, me apresso também a reconhecer, exercem pleno direito seu. Se solicitado, apresentaria evidências públicas de minhas posições sobre a questão, mas imagino que baste lembrar que, na Bahia, sou branco-da-terra - ou seja, não chego a ser branco-branco mesmo, que lá não tem, com a notória exceção do cônsul da Noruega. Também não acredito que, examinado por uma comissão racial do Terceiro Reich, eu seria considerado ariano.
Ressalva feita, percebo que corro o risco de escrever um texto sem pé nem cabeça, porque já me acomete a compulsão de entrar em digressões, antes de sequer anunciar apropriadamente o assunto. D. Madalena, sabem os abnegados que me lêem com alguma constância, minha professora em Itaparica, dizia que eu era um menino muito bom, etc., mas apresentava um problema na idéia. Ela tinha razão, claro, e eu, que ainda hoje pretendo escrever sobre outras coisas, acabo dando uma tocadinha nesse atraso da espécie humana que é a noção de raça. Quanto ódio, quanta tragédia, quanto horror por causa de algo cuja própria existência é hoje praticamente negada pela antropologia humana. E agora mesmo, enquanto os outros países, inclusive e notadamente os Estados Unidos, retiraram ou procuram retirar do texto da lei a menção a raças, nós estamos arriscados a inseri-las em nossa ordem jurídica. Não só, ao menos para mim, seria muito triste ver meu país dividido entre brasileiros brancos e brasileiros negros, como a nossa legislação estaria incorporando um erro científico escandaloso. É como se, no Código de Processo Penal, por exemplo, se considerasse suspeito um indivíduo que Lombroso consideraria ter as características físicas de um assassino.
O preconceito brasileiro é malévolo, calhorda e destrutivo como qualquer outro, mas não é igual ao racismo dos americanos. O remédio que faz bem a eles faz mal a nós, é como dar aspirina a gato (não dê, que ele morre). O reverendo Martin Luther King enfrentou o martírio para tirar o que estava na lei. Era postura municipal, ou coisa assim, negro sentar-se no fundo do ônibus em Nova Orleans. Em fins da década de 50 ou começo da de 60, no século passado, um negro e uma branca casaram, acho que na Virgínia, e foram presos e condenados por casamento inter-racial, ou barbaridade semelhante. As Forças Armadas americanas só foram integradas depois da Guerra da Coréia, não faz muito. Eles agora estão cheios de conversa porque talvez elejam um negro para a presidência. Pelo critério deles, é possível que nosso único presidente branco tenha sido o general Geisel (e agora Lula, é claro; outro dia mesmo ele disse isso num improvisozinho e, do sindicato para cá, alisou o cabelo para não deixar nenhuma dúvida). Nossa história é outra, nossa discriminação é outra, nosso problema tem que ser resolvido pelo nosso pensamento, nossa história e nossa vivência e não através de medidas e critérios colonizados - é uma desgraça, a gente não consegue deixar de ser colonizada.
Mas perdoem-me, pois não era mesmo nisso que eu ia falar. É que d. Madalena, como disse eu, estava certa, de fato devo ter um problema na idéia. Estou lendo aqui, por exemplo, que o dr. Daniel Dantas costumava receber restituição do Imposto de Renda. Assim nenhum portador de problema na idéia resiste. Acho que até mesmo os muitos de nós, da classe média (a qual todo mundo adora esculhambar, coitada, sina triste), que ralam para entregar ao governo a grana de pelo menos quatro meses de trabalho por ano e que não têm problema na idéia desde a infância, também são atingidos por notícias como essa. Bem verdade que eu já sabia que bilionários conhecidos meus recebiam restituição, enquanto, de meu dinheiro, garfam na fonte quase 30% e depois ainda fico pagando mais por mês, para inteirar os trocados que os ricos recebem ou furtam. E praticamente todo ano sou chamado a explicar isso ou aquilo à Receita Federal que, como se sabe, não alisa ninguém. Se alisasse, como era que ia conseguir o dinheiro para efetuar restituições a necessitados como o dr. Daniel Dantas e outros compatriotas penuriosos?
Fico meio tonto, penso em ligar para Toinho Sabacu, lá em Itaparica, e perguntar se ele conhece algum chá para fraqueza da idéia, mas resisto e prossigo no cumprimento do dever, vamos continuar lendo estes jornais. Coisas interessantíssimas. O presidente da República dá ordens ao ministro da Justiça; o ministro da Justiça dá ordens ao superintendente da Polícia Federal; o superintendente da Polícia Federal dá ordens aos delegados. Talvez haja uma falha qualquer nessa enumeração, mas o fato é que o delegado que cuidava do inquérito foi dispensado pelos superiores dele. E aí tomou um esculacho do presidente, por não cumprir seu dever moral ou vir a público explicar-se. Quando eu vi o delegado em público, pela televisão, ele estava dizendo que queria ficar. Será que vi mesmo? Será que o problema na idéia piorou?
Deve ter piorado. Olhem aqui o jornal, greve de petroleiro, greve de portuário, de carteiro, o País maravilhoso mas os preços subindo e Carlinhos Judeu, lá no boteco, garantindo que vão subir mais. Nada disso, exagero dele. Volta aos jornais. Sim, o presidente do Supremo taramelando como uma comadre velha lá na ilha, o presidente do Senado com vergonha (sic) de terem pensado em criar mais cargos para dar de presente, o presidente da República fazendo caras e bocas, a PM carioca matando o assaltado para evitar o assalto, o... Onde é que eu botei o número do telefone de Toinho?
O Globo (RJ) 20/7/2008