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O Outro Possível

 

O tema, ou melhor, o paradigma teórico mais recorrente na vida dos estudiosos das políticas e das artes neste momento é o compartilhamento. Além da velha e resistente inter, multi, trans e pós disciplinariedade, essa longa trajetória da erosão da compartimentação dos saberes disciplinares e fragilização de fronteiras radicaliza-se agora num modo de criação e produção diferenciados chamados pelos nomes de co-working, startups, co-gestão, espaço makers, a nova bandeira dos processos da produção cultural inovadora. A ideia principal aqui não é só baratear custos, mas, sobretudo, as possibilidades de conexões entre profissionais de diferentes competências, a mistura de projetos comerciais, empresariais, independentes, criadores. A eficácia da combinatória de conhecimentos e metodologias, a criação de uma comunidade de interação vem tornando-se, cada vez mais, um critério de produtividade e inovação. Este movimento parece ter sido o efeito de dois segmentos produtivos recentes e impactantes: o segmento da economia criativa e o da tecnologia. Enfim, um novo mundo que sinaliza a urgência de novas estratégias e processos de criação e produção.

É interessante que Jean Lyotard já tenha previsto e anunciado há tempos, no seu livro, A condição pósmoderna, de 1979, uma séria transformação em curso na noção de valor da criação artística ou da produção de conhecimento. Afirma Lyotard que a noção de “novo” havia perdido eficácia como critério de avaliação. Ao contrário, a criação pós-moderna se daria na articulação entre segmentos de discursos diversos, entre linguagens artísticas e/ou científicas e a partir da qual seriam definidos seu valor e sua originalidade. Ou seja, há quase 40 anos, Lyotard já diagnosticava o sentido inovador da troca entre discursos e linguagens distintas, e, por conseguinte, da sintaxe como elemento produtivo por excelência.

Ao falar em sintaxe, articulação, compartilhamento etc, é inevitável falar também em diferença. Esse é um termo quase caixa preta, de difícil definição, mas, ao mesmo tempo, urgente neste momento de crescentes e implacáveis xenofobias e intolerâncias. Neste quadro, torna-se crucial pensar e repensar em como atuar e como perceber as infinitas implicações desta noção e de sua abordagem. Não me sinto capaz de, neste momento, propor modelos ou mesmo formas novas para lidar com esse velho problema que é o encontro, ou mesmo embate, com o outro.

A partir dessa fraqueza, me proponho aqui a descrever minha própria experiência de uma intelectual, branca, de classe média, que, durante toda sua carreira profissional, perseguiu a obsessão pelo outro. Assim, falando na primeira pessoa, sinto que tanto o papel do intelectual e do artista, quanto do ativista, em relação ao confronto ou percepção da diferença - tem uma longa trajetória.

Na realidade, é só tardiamente que a alteridade adquire relevância ontológica na filosofia moderna ganhando uma centralidade definitiva na filosofia ligada ao pós-estruturalismo, quando o “outro” passa a ser entendido como parte constituinte do “mesmo”. Esse ascenso da importância da alteridade, me parece que se aplica com bastante evidência à análise da revolução jovem dos anos 60, com o vendaval “sexo, drogas e rock & roll”. É o momento da já histórica revolução comportamental, do choque da chegada do homem à lua, da luta pelos direitos civis dos negros, da pílula anticoncepcional, de Mary Quant e sua minissaia ou do imbatível tema dos efeitos mais amplos da liberação sexual.

Por outro lado, uma observação mais atenta, pode perceber como o ethos libertário daquele momento parece responder mais diretamente a uma outra descoberta da época, mais impactante e mesmo mais desestruturante que todas as anteriores, e que pode iluminar seu significado. Falo da surpreendente “descoberta do Outro”, fator decisivo nas formas de lutas e resistências culturais que desenharam a década de 60.

Neste caso é importante sublinhar o fato de que, desde o final dos anos 50, a Europa vinha assistindo a uma inédita sucessão de guerras de descolonização que alteraram de forma efinitiva o perfil não apenas econômico, mas, sobretudo, cultural do chamado Primeiro Mundo. Resumindo a enorme agitação histórica do período 1950/60 temos: em 1956 a Independência da Tunísia e do Marrocos, em 1957, a Independência de Gana, em 1958, a Independência da Guiné francesa, em1959 a da Guiné Portuguesa. Em 59, Independência das colônias francesas ao sul do Saara. Em 62, a Revolução da Argélia. Já na virada da década, assistimos o crescimento do nacionalismo na África Negra e a uma sequência de insurreições: 1960, Guerra Civil no Congo; só no ano de 1961, temos o assassinato de Lumumba, a agonia do Congo, o levante de Angola, a retomada pela Índia de Diu e Goa - possessões portuguesas-, a Independência da Rodésia do Sul e da África do Sul. Em 1962, a Independência de Trinidad-Tobago; em 1963, a Independência do Quênia e de Zanzibar; em 1964 a emblemática prisão de Nelson Mandela e a insurreição de Moçambique; em 1965, aIndependência da Rodésia; em 1967, a Guerra de Biafra na Nigéria. Finalmente, em 1968, o estopim da rebelião jovem que foi a Guerra do Vietnã, que durou sete longos anos.

Fiz questão de registrar exaustivamente essa sucessão de guerras e rebeliões de descolonização – ainda que incompleta –, porque julgo que esses acontecimentos, mais do que as revoluções comportamentais da década, são os que, na realidade, mais sinalizam a chegada convulsiva e os desdobramentos futuros do que viria a ser conhecido mais tarde sob a logo de “os anos 60”.

Insistindo em trazer o sentimento e a experiência dessa época, cito Sartre no prefácio a Les Damnées de la Terre, a clássica obra de Frantz Fanon sobre a luta contra o colonialismo vista na perspectiva da dialética da relação do senhor e do escravo. Escreve Sartre: “Há não muito tempo, a terra tinha dois bilhões de habitantes: quinhentos milhões de homens e um bilhão e quinhentos milhões de nativos. Os primeiros tinham a palavra, os outros simplesmente a usavam” (...)

Portanto, os anos 60, foram o momento em que todos esses “nativos” tornaram-se seres humanos. Essa sim, foi uma autêntica revolução de repercussão política, tanto nas políticas externas das metrópoles quanto nas políticas internas das diversas sociedades nacionais. Ou seja, as guerras de descolonização naquele momento definiram mudanças significativas simultaneamente no que diz respeito aos súditos externos – ou os “nativos” habitantes das ex-colônias – quanto aos súditos internos, os “outros” destes países – os negros, as mulheres, as minorias. Foi a essa luta que os jovens rebeldes de 1960 /68 se agregaram com paixão e imaginação.

Nesse panorama, no qual diversos segmentos da cultura responderam com força e espanto às novas vozes que surgiam no cenário, os intelectuais e artistas encontraram seu lugar numa espécie de militância apaixonada e imaginativa, abrindo espaço para a manifestação das antigas alteridades, que agora surgiam como os novos sujeitos políticos. A luta dos negros pelos direitos civis foi decisiva e talvez a mais impactante de todas, seguida pelo movimento feminista que eclode nesse momento reclamando direitos libertários, já bem distantes das demandas das sufragistas dos anos 1920. Simultaneamente, e de maneira curiosa, o jovem se institui como sujeito político independente de suas origens de classe, étnicas e religiosas, o que surpreendeu as análises históricas e políticas ainda baseadas na noção de classes sociais.

Este me parece ter sido o momento no qual explode (ou implode) a consciência do outro na produção cultural dando lugar a todas as consequências trazidas por este forte impacto. No Brasil, no quadro da política populista-revolucionária de João Goulart, a relação com o “outro”, tomou a forma de forte apoio aos sindicatos e às ligas camponesas, além de um trabalho direto e pedagógico de conscientização voltado para os habitantes das favelas ou de regiões de baixa renda.

Após o golpe militar que depôs João Goulart, sob a mão forte ditadura militar, esse "outro” foi configurado na figura generalizada do “pobre”, uma vez que os movimentos de minoria não tiveram o mesmo espaço e, portanto, não floresceram como países de sistemas democráticos. Naquele momento, entre nós, o intelectual falava com segurança sobre e pelo povo, ou o “outro”, convicto de sua própria legitimidade representativa, com sentimentos de satisfação e orgulho.

Mesmo com o redirecionamento necessário do protagonismo das minorias, os anos 60-70 no Brasil, começam a se sensibilizar com aquilo que ganhou o nome de alteridade e foi se consolidando politicamente nas décadas seguintes.

Assim, a partir dos anos 1980, durante a distensão política, a posição relacional de fala e ação dos artistas e intelectuais muda de lugar e de função. Foi o momento dos ativismos juntos às minorias dos anos 80, levados principalmente pelas ONGs ou pelo terceiro setor, que cumpriam com certo sucesso o papel de negociadores entre o estado e os novos movimentos sociais que então se consolidavam à sombra das utopias multiculturais pós-modernas.

Mesmo reconhecendo os limites do multiculturalismo e, sobretudo, de uma possível democracia radical, no sentido de Ernesto Laclau, os intelectuais nos anos 80 atuavam – e obtinham alguns resultados positivos – como tradutores culturais, com o objetivo de reequilibrar alguns pontos de força então em franco curto circuito no campo político-cultural.

Eu disse, no início, que me permitiria, emergencialmente, falar em primeira pessoa sobre o longo caminho político e cultural dos encontros com a “alteridade”, na medida em que minha vida profissional é profundamente enredada com a dificuldade da percepção e do lidar com as diferenças. Isto é, com a escuta do outro, com o exercício do encontro cultural, e, sobretudo, com a procura de um lugar de fala e de troca: possibilidades que experimento, assustada, cada vez mais ciente de sua complexidade.

Essa longa conversa me pareceu importante para registrar, ainda que no quadro limitado da minha experiência profissional, os sucessos e percalços do caminho em direção ao outro e os vários formatos experimentados de articulação e colaboração entre linguagens e sujeitos distintos experimentados a partir dos anos 1960.

Posto isso, fecho essa cena e volto ao começo desta fala, de forma tão abrupta quanto foram as mudanças radicais que se anunciaram na virada do século XXI.

O século XX terminou em grande estilo trazendo duas novidades que deixariam para trás qualquer sinal de solução de continuidade da, digamos, descoberta do “outro” dos anos 60. Me refiro à emergência das vozes das periferias, especialmente, através de um ativismo cultural pró ativo, autossuficiente, que mostra uma inequívoca força política e cultural autônoma, e ao impacto decisivo das tecnologias digitais e da natureza rizomática e incontrolável das mídias sociais. O que fazer diante dessas duas variáveis que, de certa forma, recolocam para o artista e para o intelectual uma segunda descoberta do “outro” não menos desconcertante do que aquela a que me referi como o motor da rebelião jovem dos anos 60? A grande diferença é que esse novo “outro” surge com uma razoável autonomia e vem das bordas metropolitanas, bem mais próximo e familiar do que os “nativos” das guerras de descolonização.

Por outro lado, a segunda grande novidade, a cultura da web, potencializa de forma inédita, para um público extenso, que atravessa as diversas classes sociais - incluindo-se aqui os segmentos das minorias raciais e sexuais - propiciando e estimulando a criação de redes de mobilização, empoderamento e visibilidade. Além disso, promove também um acesso inédito à informação, diferentes expressões culturais e horizontes ideológicos.

Na mesma clave, o universo digital e suas redes apontam para a possibilidade de novas formas de conexão entre diferenças, saberes e modos de produção, estimulando essas interações em inúmeros formatos como os chats, o Facebook, o Instragran, o Twitter e os blogs, entre inúmeros outros, que se multiplicam a cada dia.

É neste contexto que surgem as noções e as práticas conhecidas como Conhecimento Compartilhado, Inteligência Coletiva (Pierre Levy), Inteligência Simbiótica (Norman Lee Johnson) ou Sabedoria das Multidões (James Surowiecki). O que consolida uma Inteligência Coletiva, segundo Levy, não é a posse do conhecimento – que é relativamente estática – e sim o processo social de aquisição do conhecimento – que é dinâmico e participativo –, testando e reafirmando os laços sociais. Essa seria, uma nova forma de pensamento sustentável e uma espécie de democracia em tempo real, pelas possibilidades de interação livre entre os pares, dando-se é claro, o devido desconto para o atraente otimismo de Levy. Finalmente, afirma, em grande estilo, que a inteligência se expressa, principalmente, na capacidade de reconhecer o outro.

Volto, mais uma vez, de forma abrupta, para a trajetória do meu DNA 1960, a esta altura já bastante corrompido. Considerando o impacto, tanto das interações e dos novos modelos de criação e produção no ciberespaço, quanto da força e constante expansão das estratégias políticas e artísticas vindas das periferias - que, nestas duas últimas décadas, vinham mostrando um potencial explosivo -, decidi criar, na Universidade, um laboratório na Universidade com artistas, lideranças, ativistas e produtores culturais das periferias. Me interessava particularmente a questão das possibilidades da tradução cultural e da produção compartilhada de conhecimento dentro da academia, onde está localizado meu campo de trabalho.

Foi assim que, em 2009, no contexto do Programa Avançado de Cultura Contemporânea, vinculado à Faculdade de Letras, em parceria com a Agência de Inovação, ambos da UFRJ, foi criado um laboratório de Tecnologias Sociais, que denominamos de Universidade da Quebradas. A missão deste laboratório era articular professores, pesquisadores e alunos da Universidade com intelectuais, artistas, ativistas e produtores culturais das regiões periféricas e favelas do Rio de Janeiro, que já com tivessem um trabalho relativamente consolidado, com o objetivo de experimentar formas de produção de conhecimento compartilhada. Inicialmente, fizemos um piloto com dez artistas convidados e professores de várias origens institucionais. Esse piloto nos deu a noção das dificuldades a enfrentar. Percebemos que, na realidade prática, a nossa proposta de desconsiderar a hierarquia dos saberes, colocava mais problemas do que supusemos ao concebermos o projeto. Me dei conta, ali, da minha primeira grande ingenuidade.

O conceito metodológico inicial que fundamentava esse piloto era o de “ecologia de saberes”, desenvolvido, ainda que de maneiras diferentes, por Felix Guattari e Boaventura de Souza Santos. Por ecologia de saberes estes autores entendem uma quebra significativa no equilíbrio sistêmico entre as diversas modalidades de saberes vernaculares e acadêmicos, (científicos e técnicos) bem como a longa trajetória histórica de silenciamento de certos saberes não formais por outras formas dominantes de conhecimento. Para restabelecer este equilíbrio, em novas bases, trabalhamos baseados na ideia de troca de conhecimento, com vistas a uma produção compartilhada de saber. Nossa meta se baseava em outro conceito, não menos estimulante: a noção de reconhecimento tal como desenvolvida por Axel Honneth. Para esse autor, reconhecimento é uma relação produzida a partir de um conflito democrático por meio do qual indivíduos ou grupos conquistam autoconfiança (na esfera do afeto), auto-respeito (na esfera do direito) e auto estima (na esfera da solidariedade). Por outro lado, o conflito (ou negociação) democrático é aquele que amplia a integração e o reconhecimento da diversidade no conjunto da sociedade, alterando definitivamente o próprio padrão de socialização. Era mais ou menos essa procura de reconhecimentos que movimentos culturais como o hip hop experimentavam através da busca de visibilidade e da articulação política explícita em suas atitudes proativas e de denúncia.

Com base nesses pressupostos, o currículo do laboratório da Universidade das Quebradas oferecia aulas expositivas no campo das humanidades em nível de graduação, associadas ao que chamamos de Território das quebradas, que consistia num conjunto de seminários oferecidos pelos próprios “quebradeiros” sobre temas relativos à estética da periferia, história das comunidades a que pertenciam, e os paradigmas de conhecimentos utilizados nas expressões culturais das favelas e periferias. O resultado produzido por essas trocas acontecia num outro espaço, que denominamos de Território do encontro, destinado ao compartilhamento de projetos pessoais e de estabelecimento de trabalhos colaborativos.

Essa troca estabeleceu uma dinâmica pedagógica bastante particular que pretendia abrir horizontes para novas formas de produção de conhecimento menos especializados gerados a partir de articulações culturais inovadoras.

A proposta a que nos propusemos é tão desafiante e complexa que não me sinto confortável para relatar resultados conclusivos. Nem cabe aqui fazer a história detalhada destes oito anos da experiência na Universidade das Quebradas, onde as dificuldades e as barreiras que surgiram são bem mais estimulantes que os seus possíveis acertos. Mas se há um resultado que pode ser efetivamente afirmado agora é a riqueza deste processo.

De início, o encontro de saberes de pesos e níveis de legitimação diferenciados trazendo e perplexidade. As diferenças tornam-se mais contrastadas e o não reconhecimento deste percalço é fatal. Diante do saber vernacular ou popular, os repertórios acadêmicos comportam-se mal. Ou os atores acadêmicos “facilitam” ou simplificam seu discurso, subestimando a capacidade de escuta dos atores periféricos, ou supervalorizam a produção das periferias, considerada mais forte por ser expressão de uma “experiência verdadeira” – atitude que muitas vezes resulta de uma carência de informação ou conhecimento empírico dos processos expressos na produção científica lato sensu. Por outro lado, os atores das periferias se intimidam, de forma surpreendente e mesmo inesperada, ao se conectar com este novo território. Difícil evitar armadilhas. A tradução cultural é falha em ambos os casos. O compromisso com o exercício de uma escuta forte parece uma saída razoável.

Depois da avaliação do projeto piloto, colocamos “a mão na massa”, passando a tomar certos cuidados importantes. Em primeiro lugar, formatamos um edital, seguindo o modelo acadêmico, no qual os candidatos ao laboratório devem apresentar sua produção e/ou portfólios em material impresso, CDs ou vídeos. Para além de representar um rito de passagem para a entrada numa Torre de Marfim, este item é avaliado com rigor para que os incluídos no projeto possam se constituir em interlocutores fortes nos processos de troca. No processo de seleção dos candidatos, não levamos em consideração nenhuma forma de titulação nem escolaridade, apenas seu potencial de interlocução, O que é mais difícil do que parece, dado o caráter subjetivo desse critério. Diante do grande número de avaliações precárias sobre esse dito potencial, a partir do segundo ano decidimos que a banca de seleção deveria ser formada por professores e ex-quebradeiros, na mesma proporção. A eficácia da escolha entre pares foi tal que, a partir da quarta edição, a seleção passou a ser totalmente feita por ex-participantes da UQ. Isso deixa bastante claro que a expectativa que tínhamos em relação aos selecionados eram baseadas em critérios sutilmente ineficazes, ou seja, percebemos em que medida a romantização dos saberes e performances populares pelos acadêmicos era praticamente inevitável e constituía um obstáculo ao projeto.

Outra dificuldade inicial com que nos deparamos foi o tempo necessário para a conquista de autoestima ou reconhecimento nos momentos iniciais do “curso”. Era evidente a dificuldade dos quebradeiros para se situar no novo espaço acadêmico que lhes foi reservado, embora o objetivo fosse exatamente promover um deslocamento de cenário e ativar as consequências simbólicas dessa mudança de posição. Percebemos que a “adaptação” só começava a ocorrer a partir do segundo mês de atividades, o que era um tempo excessivo.

Colocamos o problema em discussão, e resolvemos criar um novo evento de abertura para cada edição do laboratório. Semelhante a uma cerimônia de “batismo” religioso, era diametralmente diverso da típica semana de calouros que marca a entrada na universidade, pondo à prova a resistência psicológica dos novos alunos com ações muitas vezes agressivas. Assim, instituímos a Chegança, ritual que me era desconhecido, mas é de grande importância em algumas culturas tradicionais. A versão de Chegança construída em conjunto com os alunos se passou a ser uma recepção dos novatos pelos antigos participantes, seguida de troca de impressões sobre ganhos e temores e um lanche farto e belo compartilhado. Essa estratégia funcionou com cem por cento de sucesso e, daí para a frente, as atividades iniciais do projeto assumiram uma dinâmica mais rápida e fluida.

Do ponto de vista do conteúdo, também houve mudanças significativas. O programa da primeira turma havia sido pensado no sentido de aumentar o repertório dos envolvidos de ambos os lados. Os temas das palestras cobririam com diferentes disciplinas como filosofia, história da arte, literatura, teatro, etc, visando oferecer um panorama amplo do conhecimento humanista, desde o período clássico greco-romano até o modernismo. A proposta era que a equipe acadêmica ofereceria palestras de professores altamente qualificados e, no caminho inverso, os quebradeiros também organizariam palestras, seminários e atividades que pudessem expor, a um público acadêmico, questões sociais e culturais contemporâneas próprias dos seus locais de origem, o chamado Território das Quebradas. Num primeiro momento, foi uma alegria: zero conflito e um evidente aumento de repertórios em ambos os lados. Num balanço que realizamos em conjunto ao final da experiência, no entanto, percebemos que a troca havia sido claramente assimétrica. Que não tínhamos efetivamente conseguido articular os saberes, nem produzir formas novas de conhecimento, como era a missão assumida por nós na Universidade das Quebradas. Por outro lado, percebemos que, a meta da participação dos quebradeiros, era rejeitar a associação vigente de sua produção com as noções de exclusão e carência, com a qual definitivamente não mais se identificavam, colocando a periferia no lugar do contemporâneo, como bem expressa Marcus Faustini.

Nos períodos seguintes, tentamos “realinhar” nossas ações, modificando, anualmente, o eixo do programa, assim como experimentando diferentes formas de troca, e mesmo de encontro, nas quais a escuta fosse priorizada. Esse realinhamento foi feito com base em questionários semanais em que pedíamos aos participantes que expressassem suas sugestões e críticas sobre o programa e os processos de relacionamento. É importante lembrar que, ironicamente, os questionários foram aplicados apenas aos quebradeiros, mas nunca aos professores ou membros da equipe. As recaídas hierarquizantes foram continuas e viciosas. A assimetria-não fora resolvida. Sublinho que não estou me referindo, aqui, à assimetria entre os saberes - o que seria ingênuo- e sim -à hierarquia presente na distribuição dos espaços e pesos de fala e de escuta.

Não cabe relatar todos os percalços e limites dessa experiência. Pretendo fazê-lo um pouco mais adiante, quando uma certa consolidação do projeto já estiver configurada. Por agora, posso dizer que, foi no momento em que passamos a tematizar a questão da troca em si, que conseguimos um aquecimento na própria natureza dos diálogos e confrontos. Um fator muito importante identificado ao longo das discussões, foi a função central do afeto, talvez, provavelmente, devido a uma visível “cumplicidade de causa” entre as partes envolvidas no projeto. Ou, a um processo de ampliação espontânea do compromisso com o que Charles Siqueira chamou de ING (Indivíduo Não Governamental), ou seja, aquele que assume a responsabilidade de devolver socialmente o capital adquirido, no caso, no contexto da Universidade das Quebradas. Outra observação importante é a de que ainda que as pessoas estejam ligadas pelo afeto, é fundamental assumir e apostar nas diferenças entre elas, tanto no que se refere ao peso dos saberes, quanto às desigualdades sociais. Esse reconhecimento das diferenças leva necessariamente à explicitação de conflitos surpreendentemente produtivos e, indo mais além, percebemos que o locus ideal para nossa intervenção seria no interior da tensão entre desigualdades e diversidade.

Outro fator que produziu um ganho significativo na dinâmica de interações foi o uso da internet, através do site (www.universidadedasquebradas.pacc.ufrj.br) e das mídias sociais, como o Facebook. A comunicação digital aumentou enormemente a chance de estabelecer uma relação direta entre os participantes atuais e antigos da Universidade das Quebradas, com a formação de redes participativas e produtivas. Curiosamente, embora pareça paradoxal, ficou claro, ao longo da nossa experiência, que, a própria natureza das conexões à distância favorece a intensificação e a rapidez das articulações. A participação em comunidades na web é bem mais pessoalizada e mobilizadora do que a participação presencial dos sujeitos envolvidos. Assim, a ênfase na atuação nas mídias digitais mostrou ter um forte potencial de ampliação das práticas de trocas colaborativas através, por exemplo, de iniciativas como a criação de cartografias culturais com base no Google Maps, que amplifiquem a visibilidade e o reconhecimento dos territórios de origem dos participantes. Não é à toa que os estudiosos das formas de compartilhamento focam suas pesquisas na web, onde as diferenças parecem se tornar mais flexíveis e, portanto, mais passíveis de interlocução no diapasão da igualdade.

Um último ponto que eu gostaria de observar, entre os tantos que estou, lamentavelmente, deixando de lado, são os diferentes graus de dificuldade de reconhecimento do outro e, portanto, de produção compartilhada, nos diferentes campos de criação. Percebo hoje, uma clara tendência de autoria flexibilizada na literatura, na poesia e mesmo na prosa de ficção, bem como nas parcerias entre linguagens e territórios nas artes visuais. Uma evidência desse potencial foi o projeto Rio Occupation London, realizado por ocasião das Olimpíadas de Londres, e também, em larga escala, nos produtos advindos da lógica colaborativa dos co-workings e dos makers.

Entretanto, ficou também claro, na experiência da Universidade das Quebradas, como a área da produção de conhecimento ainda é visceralmente regida pela ideia de propriedade intelectual, além da evidência de que o campo intelectual é bastante reativo no que diz respeito aos saberes informais enquanto valor de troca. Talvez seja essa a maior dificuldade e também o maior encantamento dos problemas que teremos que enfrentar agora na arena universitária.

Chegaremos lá?

A Arte do Intercâmbio Cultural, 12/09/2023