Pôr fim à violência sexual é um compromisso que todos aqueles que abominam as sociedades autoritárias devem assumir
Essa lei covarde pretende dificultar a assistência que os serviços públicos de saúde devem prestar a mulheres vítimas de estupro. Entre outras humilhações, dificulta o acesso à pílula do dia seguinte, que tem livrado muitas vítimas do pesadelo de se descobrir grávida de um estuprador. Desde 1940, a gravidez resultante de estupro é razão de aborto legal. Ninguém, em sã consciência, pode esperar que uma mulher carregue pelo resto da vida a sequela de um crime hediondo. Só um ódio patológico admite acrescentar à tragédia do estupro a dor de uma gravidez que gera um feto, não um filho. A hipótese sádica de que ela seja a isso obrigada já foi afastada há mais de 70 anos.
O presidente da Câmara dos Deputados se aproveita do pandemônio em que ele mesmo transformou a Casa para tentar voltar atrás em direitos conquistados por várias gerações de mulheres. Tudo isso diante do imperdoável, do inexplicável silêncio do plenário.
De onde vem essa perseguição sistemática, o assédio nas ruas, a violência nos becos, nos trens e, pasmem, sobretudo dentro das casas? Por que esse massacre? No Rio de Janeiro, no ano passado, foram mais de 1.400 mulheres estupradas. O silêncio e a inércia das autoridades são um insulto.
Como pode persistir tão impunemente uma prática criminosa que ameaça metade da população? Isso, sim, deveria preocupar os legisladores. Deveria interrogar a consciência moral do país.
Não, não é sempre um psicopata quem viola ou mata mulheres. Bons chefes de família já foram descobertos na prática sórdida do estupro. Já aconteceu que assassinos de mulheres antes do crime fossem considerados cidadãos respeitáveis. Não são doentes, inimputáveis, são criminosos. Têm em comum negar às mulheres sua humanidade. A violência sexual é o mais grave e brutal atentado à dignidade das mulheres. Uma forma de assassinato que deixa viva um zumbi que vai parar na delegacia como se fora, ela, a criminosa.
Uma coisa, não mais que uma coisa sem vontade, sem opinião e sem direitos, uma coisa desprezível, é o que pensa de uma mulher o homem que a violenta ou mata. Na raiz da violência contra as mulheres está um sentimento ancestral de poder sobre seus corpos e almas que persiste no século XXI como um eterno retorno à Idade da Pedra.
É esse poder que tem que ser posto em questão. Ele se apoia ainda hoje numa cumplicidade de sociedade secreta entre homens que continuam a tratar a violência sexual como matéria para piadas que suscitam gargalhadas marotas. Ou que cria argumentos especiosos em que a vitima é sempre a culpada.
Quando este poder é contestado, quando é atravessado pelo NÃO que o desejo e a dignidade feminina exprimem, confrontado à insubmissão de que a mulher se torna capaz, a fúria se desencadeia, como se algo muito profundo e arraigado estivesse sendo ameaçado.
A existência autônoma da mulher, a autoria do seu desejo, é vivida como uma inadmissível transgressão. Quando a coisa deixa de ser coisa, ganha vida e assume a sua liberdade, vem a punição. Esta punição pode ser o estupro como pode ser um tiro.
Como é possível que uma lei tão retrógrada, tão abertamente ofensiva às mulheres, tão na contramão das liberdades que vêm sendo conquistadas pelos brasileiros, inconstitucional e injusta, tenha passado em brancas nuvens na Comissão de Constituição e Justiça sem que, no plenário do Congresso, se ouvissem manifestações de repúdio? Onde estavam os deputados comprometidos com os direitos humanos? Por que se calaram? Por que se omitiram? Que saiam do silencio e impeçam a aprovação dessa lei que ofende as mulheres e não interessa senão aos desígnios obscuros de seu autor. É o mínimo que deles se espera. Devem isto a si mesmos, às mulheres e a seus eleitores.
Pôr um fim à violência sexual é um compromisso que todos aqueles que abominam as sociedades autoritárias, homens e mulheres, devem assumir. Impedir que esta lei seja aprovada faz parte desse compromisso. Cada um encontrará a maneira de manifestar seu repúdio, falando, escrevendo, protestando nas ruas e nas redes sociais. Não é admissível a indiferença. Este é um desafio moral similar ao da recusa absoluta da tortura.