Eu sei que ninguém agüenta mais falar no assunto, mas tenho certeza de vai rolar papo papal novamente, sem querer fazer trocadilho. Tu também acha que a Igreja precisa de renovação, não acha, não?
- Não tenho certeza. Eu, particularmente, gostava mais do tempo da batina e do latinório, tinha mais mistério, a gente respeitava mais os padres.
- Tu tá por fora, cara, tu não tá vendo que as posições da Igreja não dão pra sustentar? É só você ler nos jornais, é a questão da camisinha, do casamento dos padres, dos homossexuais, do aborto, da ordenação das mulheres, uma porção de coisas em que a Igreja precisa se atualizar.
- Já eu acho o contrário, acho que já se atualizou demais. A Igreja não faz mais mágica, não tem mais mistério, você fala com um padreco desses de jeans, cabelão, camisa aberta no peito, tatuagem e amiguinhas, e aí procura um cara de prestígio aqui mesmo, já que prestígio no céu não deve ser com ele.
- Nunca esperei ouvir isso de você, cara, que reacionarismo horroroso! A Igreja precisa é escutar a voz do povo, precisa da participação dos fiéis.
- De acordo. Precisa de participação dos fiéis mesmo, mas os fiéis não querem ir lá para discutir reforma agrária e desemprego, eles querem ir lá para conversar com Deus e os santos, isso é o que eles querem e não deixam. Aí eles vão a uma igreja pentecostal e dão o dízimo deles na maior felicidade, porque lá tem Jesus, tem milagre, tem combate ao demônio, tem cura, tem uma porção de coisas que antigamente a Igreja tinha e hoje não tem mais.
- Que coisa mais triste essa tua posição! Os fiéis não querem nada disso, eles querem é uma Igreja sintonizada com a realidade de hoje em dia, querem ser ouvidos.
- Eles sempre puderam ser ouvidos. Ou se ajoelhavam e rezavam, ou falavam com o padre, ou se queixavam pro bispo. Sempre houve isso, embora hoje geralmente o padre prefira convidar o fiel para um drinque e trocar umas idéias sobre a conjuntura nacional e a novela das oito a ficar nessa conversa de salvação, paraíso, essas coisas que ele não revela, mas acha babaquice.
- Cara, eu estou de queixo caído com você, nunca pensei em ouvir essas idéias vindas de você, é uma decepção. A Igreja tem que acatar as posições dos fiéis, tem que mudar mesmo, acho que não há quem não concorde.
- Então tá certo, a Igreja é uma democracia. Deus se candidatou, foi eleito, precisa respeitar o eleitorado, a decisão da maioria etc. Então está certo.
- Não, agora você também já está me gozando, eu não sou idiota para falar uma coisa dessas. O que eu quero dizer...
- O que você quer dizer eu já sei. E, pensando bem, dá até pra aceitar numa boa. É uma mudança meio radical, mas admito que pode ter suas vantagens, principalmente para o Brasil.
- Cara, quantos chopes tu já tomou hoje? Tu nunca regulou direito, mas hoje tu tá demais, não tá juntando coisa com coisa.
- Não é nada disso, é que eu sou um sujeito de mente aberta. Se a maioria pensa como você, então não se vai rejeitar tudo assim de pronto, eu realmente vejo aspectos positivos nessa renovação. Me deu um estalo de repente e aí eu confirmei mais uma vez que Deus escreve mesmo por linhas tortas. Tu me conhece desde o curso primário, tu sabe que eu penso rápido. Pensei aqui e senti que, se isso que você disser puder ser plenamente realizado, será uma vitória. E uma vitória não só para o Brasil como para minhas posições.
- Eu não falei que tu não tava juntando coisa com coisa? Tu não disse que discordava das mudanças? Como é que passou a concordar?
- Velocidade de raciocínio, velocidade de raciocínio, cara, já falei. Com essa tua solução, só resta saber se o Papa pode ser escolhido entre leigos. Deve haver um jeito, porque minha idéia é que somente um certo candidato brasileiro preenche as condições e, se as normas permitirem, já tá eleito.
- Não saquei de novo, quem é esse cardeal?
- Cardeal nenhum, mas está na cara quem é. É o Lula, claro, candidato ideal. E o problema de não ser padre não existe, ele mesmo já falou que não tem pecado. Até o Papa que morreu dizia que tinha pecados, mas ele não tem, então não vai dar problema. Só com o projeto Inferno Zero, ele garante a vitória. Já imaginou tu entrar para uma igreja com a garantia de não ir pro inferno? É só pagar a Contribuição Provisória para a Salvação da Alma, tirar carteira na Comissão de Beatificação Participativa, tomar parte no Recadastramento Nacional dos Católicos e Simpatizantes e pronto, céu garantido, tu tem toda a razão, essa renovação vai ser muito positiva. E o Papa pode viajar muito, que é o que ele sabe fazer, tu tem razão, habemus papam, habemus Lulam.
- Eu sei que tu tá curtindo com a minha cara, mas o feitiço vira contra o feiticeiro. Pode não ser assim como tu diz, mas mudanças realmente seriam um benefício para a Igreja. Só que também seria uma derrota para sua posição.
- Nada disso, cara, seria minha vitória. Primeiro, ele ia aceitar logo, até porque é vitalício e é isso o que ele quer, pelo menos mais uns trinta anos por cima da carne-seca. Para o Brasil, ia ser a glória um papa brasileiro. E, para a ala dos que não querem inovação, já viu, não é? A gente conhece ele o suficiente para saber que a única inovação ia ser a abolição da bênção na Praça de São Pedro, porque ele nunca ia estar no Vaticano. E o único problema seriam as missas de improviso, mas Deus é alegria e não ia se importar com umas risadinhas durante os sermões. Você tem razão, vamos dar o comando da Igreja a ele, pra ter certeza de que não vai mudar nada. Ganhei essa, raciocínio rápido, raciocínio rápido.
O Globo (Rio de Janeiro) 17/04/2005