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O jurista e o retorno democrático

 

Quando se comemorou o 20.º aniversário do retorno do Brasil ao regime democrático, políticos houve - mesmo entre os que apoiaram incondicionalmente o regime militar - que teceram loas à "sabedoria" com que teriam atuado naquele evento. Na realidade, não houve inesperada volta à democracia, a qual foi reconquistada aos poucos, sendo decisiva a participação de juristas nessa ocorrência.


Como exponho em meu livro de Memórias, publicado pela Editora Saraiva, foram três as tentativas de redemocratização do País, com a elaboração de projetos de lei destinados a esse fim.


O primeiro malogro se deu na Presidência do general Costa e Silva, o qual, após ter emitido o Ato Institucional n.º 5 (AI-5), a mais violenta e antidemocrática das medidas baixadas pelo governo revolucionário, houve por bem nomear uma Comissão Especial, formada por juristas e presidida pelo vice-presidente Pedro Aleixo, com a incumbência de rever a Constituição de 1967, primeiro passo para pôr termo ao sistema militar.


Tive a honra de integrar esse colegiado, o qual se reuniu em Brasília e, em uma semana, preparou novo texto constitucional, do qual constava a competência do presidente da República para revogar, por simples decreto, o citado AI-5.


Costa e Silva não ocultou, então, o seu propósito de fazer uso dessa atribuição, tão logo publicada a revisão daquela Carta Magna, com as providências cautelares necessárias a prevenir e impedir atos subversivos.


Infelizmente, a Nação foi surpreendida com a morte súbita do presidente Costa e Silva, fato de que se aproveitaram os generais da chamada "linha dura" para constituir uma Junta Militar armada de todos os poderes, com a destituição de Pedro Aleixo, a quem caberia o exercício do cargo de chefe da Nação e a outorga da Constituição de 1969, subordinada ao ato institucional em vigor. Iríamos ter mais três generais com poderes absolutos.


Durante a Presidência de Emílio Garrastazu Médici, nenhuma iniciativa houve de volta à democracia. Foi somente com o presidente Ernesto Geisel que se veio a tratar do assunto, tendo Raymundo Faoro, que chefiava a Ordem dos Advogados do Brasil, pleiteado o imediato restabelecimento do habeas-corpus.


Foi com Geisel, embora de natureza autoritária, que se voltou a falar em abertura democrática, encarregando ele o ministro da Justiça, Petrônio Portella, de encontrar uma solução que compusesse "o máximo de liberdade possível com o mínimo de segurança indispensável".


Foi com o maior sigilo que Portella solicitou a minha colaboração, tendo eu sugerido uma revisão constitucional, com a criação conjugada de disposições sobre estado de sítio e de estado de emergência, este de competência exclusiva do presidente da República, "quando exigidas providências imediatas para impedir ou repelir a eclosão de atividades subversivas ou de guerra", com suspensão de garantias constitucionais por até 90 dias, prorrogável por igual período. Não obstante esses poderes excepcionais, Geisel não concordou em abrir mão dos outorgados sem limites pelo AI-5. Caberia a seu sucessor, general João Figueiredo, ao tomar posse da suprema magistratura da Nação, "fazer deste país uma democracia".


Foi então que adquiriu mais consistência na opinião pública a exigência de "diretas já", muito embora prevalecesse a idéia de uma progressiva reconquista das liberdades democráticas. Foi nesse sentido que evoluiu o processo democratizante, culminando na convocação de um Colégio Eleitoral, formado pelos senadores e deputados federais e por representantes das Assembléias Legislativas dos Estados.


Figueiredo não recusou essa solução, aceita por seu ministro-chefe da Casa Civil, João Leitão de Abreu, anteriormente membro do Supremo Tribunal Federal e de reconhecidas convicções democráticas.


Como, depois, a concretude do processo histórico iria demonstrá-lo, o Colégio Eleitoral transformou-se, aos poucos, em instrumento e mediador da opinião pública, elegendo, em 15 de janeiro de 1985, para a Presidência da República o governador Tancredo Neves, que se convertera em expressão do consenso nacional no sentido da democratização do País.


Foi em vão que os partidários do sistema autoritário lançaram mão de todos os expedientes para vencer, depositando toda a sua esperança no princípio da "fidelidade partidária" estabelecido pela Carta de 1969. A seu ver, o voto dos membros do Colégio Eleitoral estaria vinculado ao candidato governamental.


Entre minhas vaidades de jurista (quem não as tem?) figura a de ter sido o primeiro a apresentar as razões pelas quais entendia que o voto vinculado não se estendia ao mencionado Colégio, ficando esse preceito constitucional confinado ao Congresso Nacional, como, afinal, foi reconhecido pelo Superior Tribunal Eleitoral. Foi, pois, com justificado júbilo que recebi o seguinte telegrama de Tancredo Neves: "Brilhantes e oportunos pronunciamentos vem fazendo, vg, respaldados sua invejável cultura jurídica et honradez pessoal, vg, contribuem forma inestimável sucesso nossa campanha."


Como minha posição coincidia com a de grande número de juristas, não se podem excluir os operadores do Direito do retorno do Brasil à democracia, revelando eles mais realística compreensão dos fatos históricos.


 


O Estado de S. Paulo (São Paulo) 29/01/2005

O Estado de S. Paulo (São Paulo), 29/01/2005