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O Iraque no Brasil

 

Qualquer que seja o assunto de um romance, de uma obra literária narrativa, seu caráter interno pertence a uma longa linhagem de contadores de histórias, em que tanto estariam os livros de cavalaria, as novelas picarescas e até os livros religiosos em que se contam casos que servem de exemplos a quem os lê. Claro que o romance policial, o de aventuras e aqueles que chamamos de livros de ação, fazem também parte desse mundo literário em que vivemos.


O romance de Clair de Mattos, "O terrorista", integra a literatura de ação, talvez a de maior atração em qualquer idioma. A autora recria, em sua história, o ambiente de uma vida ligada ao terrorismo e, já no começo, mostra seu realismo no descrever a cena do menino descobrindo o corpo: "...tropeçou na perna enrijecida e deu de cara com o morto, todo sujo de sangue seco. Saiu aos gritos pedindo socorro."


A partir desse começo, tece Clair de Mattos uma história da presença de terroristas no Brasil. A raiz do enredo de "O terrorista" é o ter um deles, da al-Qaeda, abandonado a luta do grupo e, vindo para o Brasil, haver atraído o ódio de ex-companheiros, que o perseguem até as últimas conseqüências.

Conduzir uma narrativa dessas exige, de quem a faz, uma linguagem clara, uma sabedoria verbal no descrever as cenas mais fortes e um talento especial na criação de personagens e no desenvolver a ação. Ao mesmo tempo em que os personagens se agitam em suas fugas e buscas, em suas brigas e seus silêncios, amores surgem e se desenvolvem, e aparece a moça que é virgem e tem vergonha de o dizer.


Clair de Mattos conduz a narrativa com um perfeito senso de equilíbrio, as cenas de violência levando a narrativa a bom nível de feitura. O desenrolar do romance possui uma cadência de ação (diferente da simples cadência vocabular) que vai criando um suspense, um clima de medo e ao mesmo tempo de expectativa. Um bom traço de sua narrativa é um contraponto odeante que assume vários ângulos e vão mostrando, em separado, os diferentes personagens da ação.


A influência de acontecimentos internacionais em livros publicados em uma determinada época ocorre, em "O terrorista", com a força da guerra do Iraque de nosso tempo, da invasão de seu território e de tudo que a partir disto passou a acontecer no mundo. Os personagens de Clair estão ligados a essa realidade e trazem o clima do Iraque ao Brasil, numa história vigorosa em que o féretro de um iraquiano é levado sem acompanhamento a um cemitério.


Enquanto o enredo político-terrorista se desenrola, há cenas como a do Parque Lage, em que se realiza um casamento e a natureza se mostrava de modo nada terrorista. A autora descreve: "Pequenas velas amarelas pediam das ramagens, astuciosamente presas por fios de barba-de-velho refletiam o brilho dos cristais incrustados nos troncos e galhos das árvores, misturando-se ao colorido das flores campestres.


Minúsculos pirilampos riscavam o espaço com suas luzes verdes e o lusco-fusco dos pavios acesos emprestava uma tonalidade âmbar, onírica, ao ambiente translúcido. Os olhos de Sandra viam fadas, ninfas, gnomos e salamandras circulando em meio à luminosidade mágica do momento."


Desde Graham Green que se tornou comum escritor aproveitar crise política do momento para dela se aproveitar como base de um romance. Green usou o Vietnã, o Congo, o Paraguai e a América Central como assuntos e, certa vez, em conversa com o autor deste, comentou que talvez usasse Dom Helder Câmara como personagem em romance de ação passada no Brasil - o que jamais fez.


Clair de Mattos usou, como romancista, uma crise de nosso tempo, a fim de, com ela, fazer um romance, que funciona bem na sua narrativa de ação. A cena final da história, num encontro com dois inimigos que se destróem mutuamente, completa o clima trágico do romance.


"O terrorista", de Clair de Mattos, é um lançamento da Editora Nova Razão Cultural. Capa de Rafael Saldanha, editoração de Cat Torres, revisão de Hélio da Silva.


Tribuna da Imprensa (RJ) 21/11/2006

Tribuna da Imprensa (RJ), 21/11/2006