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O homem que sabia demais

 

Lobianco terminava a crônica internacional do dia. No mundo, tudo marchava bem, ou seja, tudo estava mal. Nos Estados Unidos e União Soviética evitavam o acordo sobre o uso de armas nucleares, o presidente Carter rompera a política de distensão e mandava brasa em cima do Kremlim, Brejnev não tomava conhecimento, continuava apelando para o Tratado de Helsinque e considerava uma intromissão indébita qualquer alusão aos direitos humanos, que estariam sendo violados nos países da Cortina de Ferro.

A crise no Irã ganhava pressão, a cada dia apareciam mais mortos nas ruas de Teerã.

O mundo árabe se agitava com a perspectiva de uma paz em separado entre o Egito e Israel.

Na Itália, depois do sequestro e do assassinato do ex-primeiro-ministro Aldo Moro, não acontecia nada de importante, talvez o papa Paulo 6º morresse de repente, seria mais uma notícia do que um comentário.

Encheu duas laudas com vagas considerações sobre o mercado comum europeu e a política de aproximação da França com o Terceiro Mundo -fatos mais ou menos óbvios, que serviam para encher linguiça. E era o que ele fazia com certa maestria. Não se envolvia nos acontecimentos, emitia opiniões sensatas e comuns, não criava atritos no jornal -e ganhava sem muita força o seu honesto dinheiro.

Ao acabar a última frase do artigo, lembrou que na primeira gaveta de sua mesa estavam os recibos do colégio de Almir -o irmão menor de Rosa Maria, que lhe saía cada vez mais cara, mas lhe dera uma perspectiva de vida, ele se sentia com mais gana de dispor do próprio corpo, dos próprios problemas. Viver é isso: ir à frente de qualquer maneira, até que a frente se transformasse no fim de tudo.

Subitamente estremeceu: no canto mais longe da Redação, onde se localizava a reportagem da cidade e da polícia, um fotógrafo entrou esbaforido em busca de uma ordem de serviço. Lobianco ouviu o rapaz gritar:
- Não é em cima do Cine Ópera?
Em cima do cinema Ópera morava Rosa Maria. Um incêndio, um assalto, quem sabe?
O fotógrafo recebeu a papeleta com a autorização para pegar um dos carros da reportagem.
- Quem vai comigo?
- O Seabra está lá, desde cedo, esperando por um raio de um fotógrafo.
- Algum problema em Botafogo? - perguntou Lobianco, como quem não quer nada e faz a pergunta por cortesia profissional.
O editor de polícia nem levantou a cabeça da revista que estava lendo:
- Uma morte suspeita.
- Em cima do cinema Ópera?
- Parece. Eu tenho o endereço.
- Suspeita de quê?
- Suicídio ou assassinato.

Lobianco olhou o relógio, pegou o telefone e discou. Àquela hora, Rosa Maria devia ter chegado do trabalho, tomara banho e estava esperando por ele. Haviam combinado um cinema, sessão das oito, em Ipanema.

A voz de um homem atendeu. Lobianco pensou em perguntar por Rosa Maria, mas achou estranho o fato de a moça não estar sozinha. Segundo pensava, o único homem que poderia estar ali era ele. Ia falar qualquer coisa, mas o pensamento foi rápido: se aconteceu realmente alguma coisa com ela, um telefonema naquele instante seria suspeito, até mesmo comprometedor. Desligou após o homem ter insistido no alô! Alô!

Confirmou o endereço com o chefe: era ali mesmo, o apartamento que ele comprara para Rosa Maria no ano passado, ainda faltava pagar o empréstimo imobiliário que fizera em nome dela.

Voltou à sua mesa e ia reler, como sempre fazia, o texto que acabara de fazer. Não conseguiu se concentrar e entregou as duas laudas na editoria da internacional.
- Tenho um compromisso -explicou.
- Dá uma olhada, corrija qualquer coisa errada.

Desceu ao estacionamento, 20 minutos depois chegava a Botafogo. Havia carros da polícia em frente ao cinema Ópera. Identificou-se na portaria, onde um guarda anotava quem chegava ou quem saía.

No quinto andar, nem precisou abrir a porta do elevador, um policial parecia esperá-lo.
- O senhor é o dr. Lobianco?
Disse que sim. Não sabia que estava sendo esperado.

A porta do apartamento estava aberta, muita gente lá dentro. Um dos policiais, que parecia o chefe dos demais, olhou para ele.
- Suicídio ou crime? -perguntou Lobianco.
- O senhor é quem sabe -respondeu o policial.

Folha de São Paulo, 8/4/2011