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O fim do PT e a ascensão do lulismo

 

Talvez julguem que a expressão “fim do PT” seja uma provocação. E talvez venha a redundar nisso, a depender do leitor, mas não é minha intenção. Na verdade, é o resultado de uma constatação tão “neutra” quanto é possível fazer constatações neutras, em matéria deste tipo. E é absolutamente honesta. Lembro, embora não literalmente, uma frase de Bernard Shaw a respeito do cristianismo. “A crucificação de Cristo foi o maior êxito político do Império Romano, porque o cristianismo acabou assim que Cristo expirou.”


Não estou tomando partido nisso, até porque o velho irlandês gostava muito de radicalizar em frases de efeito. Mas, de certa forma, pode-se adaptar o que ele disse à nossa realidade política. E, vendo como as coisas se têm desenrolado no Brasil, não creio de todo descabido dizer que na hora não se notou, mas o PT acabou assim que Lula foi eleito (não reeleito). Está certo, amenizo um pouco, não sou nem Bernard Shaw nem Nélson Rodrigues: o PT começou a acabar assim que Lula foi eleito e agora tem que reexaminar-se e ver para onde vai, inclusive se vai se tornar um mero instrumento de Nosso Guia.


O PT tinha uma identidade clara. Havia até uma certa aura santimonial em muitos de seus dedicados militantes. E o que representava o PT? Representava a ética e a honestidade na política, isso era pilar incontestado. E representava a mudança, pelo menos o início das reformas de que se fala desde que nos entendemos, não importa nossa faixa etária. O PT vinha para mudar. Quem votou em Lula, notadamente da primeira vez, sabia, de modo geral, que não estava escolhendo um governante através de uma revolução, mas das instituições vigentes. Portanto, muitos desses, como eu, não esperavam milagres e rupturas estrondosas. Mas esperava-se pelo menos certa fidelidade ao prometido, apregoado e bravateado ao longo dos anos, esperava-se alguma luta para a eliminação de alguns dos nossos males, esperavam-se, sim, reformas, ainda que não de todo satisfatórias. Esperava-se no governo, enfim, o PT que se conhecia, ou se julgava conhecer.


Não foi bem assim, como se viu e ainda se vê. No começo, a crise no PT se declarou internamente, provocando a expulsão de militantes como a ex-senadora Heloísa Helena e mais muita gente, inconformada com a mudança de cara do partido. Gente suspeita de falcatruas ou ladroagem ficou, oportunistas e puxa-sacos ficaram, mas aqueles outros foram sumariamente expulsos. Ainda assim, poderia alegar-se que não havia lugar para radicalismos e que esses militantes não compreendiam bem a situação nova do PT, agora guindado ao poder legítimo e sujeito às limitações institucionais e circunstanciais a que todo poder legítimo está sujeito.


Para lembrar novamente o grande Nélson, a verdade ululante é que esse PT que agora está aí não é, nem de longe, o PT da oposição. Não pode ser - sofismem de lá - porque agora é situação. Coisa nenhuma, digo eu, esse PT que está aí viu alguns de seus principais quadros desmoralizados, manchados, ou inteiramente desiludidos, mantém alianças antes inconcebíveis, não quer mais saber de reforma nenhuma a não ser da boca para fora, e é enfim, na visão cansada de quem acompanha nossa vida pública há décadas, apenas uma reapresentação de todas as nossas conhecidas vergonhas sociopolíticas, da corrupção à ineficiência ao desperdício à falta de seriedade na condução da república, enfim, o mesmo de sempre, os mesmos de sempre.


Enquanto isso, com habilidade e uma matreirice solerte que, pelo menos eu vejo em seus ares histriônicos, suas piadinhas de boa-praça e a falsa inocência para cuja plena credibilidade ele precisaria aperfeiçoar-se um pouquinho mais em artes cênicas, o presidente chama os usineiros de heróis, beija a mão de Jader Barbalho, faz tudo para segurar a barra de Renan Calheiros, enche a bola de Nelson Jobim e, no geral, age como a mais camaleônica figura, agente do status quo, capitão de um governo omisso e conservador, que insiste, contra todas as evidências, em chamar-se de progressista, o que é tão grotesco quanto ver no PT de hoje em dia um partido de esquerda.


Revestido do teflon que ele reforçou com suas alegações de que não sabia de nada, não viu nada, não tomou parte em nada, ele hoje, pelo menos até o momento em que escrevo, parece, na visão da maioria, ainda imune ao lamaçal e aos bandidos que orbitam em torno do poder. Ou seja, pode-se reprovar o PT, mas Lula é inatacável, nele não pega nada. Mais ainda, é claro que Lula não é mais PT, nem o PT é Lula. Aliás, já era tempo, embora eu não tenha nada com isso, para o partido resolver se é PT ou se é um ponto de apoio do lulismo, este, sim, palpavelmente existente.


Pai dos pobres com a farsa irresponsável do Bolsa Família, que, além de danosamente assistencialista, não transfere renda dos ricos coisa nenhuma, mentira mais deslavada não podendo haver, o presidente se dissocia claramente de seu partido e é homem da Zelite. O PT, como muitos de nós também, serviu para ele se fazer. Ele se fez e agora ser um petista ao menos parecido com o passado é inconcebível. Descrevendo a posição em que está como o “ápice a que o ser humano pode chegar”, o presidente se interessa, acima de tudo, por permanecer no poder e dele desfrutar tão intensamente quanto possível. Ao PT a crise de identidade: ou continua pegado com Lula, nesse jogo social-democrático-oportunista e até humilhante, ou volta a ser PT, necessariamente oposto a esse presidente do establishment. Ou não faz nada e assiste, como os revolucionários franceses ao ex-cônsul Bonaparte, ao presidente botar sua coroazinha de imperador. Imperador no interesse dos verdadeiros poderosos, mas na ribalta do jeito que ele gosta, que é o que parece lhe bastar.


O Estado de S. Paulo (SP) 5/8/2007