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O desacordo ortográfico

 

São de épocas distintas as tentativas de Brasil e Portugal para adotar um único procedimento no que se refere à grafia das palavras. Marcos foram os quase acordos de 1945 (quando a delegação brasileira foi presidida pelo acadêmico Pedro Calmon), depois o grande trabalho do filólogo Antonio Houaiss, que desaguou em 1990, quando parecia que tudo caminharia favoravelmente.


Brasil e Portugal, ao lado de Cabo Verde, chegaram a homenagear o então presidente José Sarney pelo que parecia o final feliz de uma longa história. Todos concordavam que seria melhor para a comunidade lusófona que houvesse o acordo ortográfico, pois o fato ensejaria a busca de oficialização da língua portuguesa em organismos internacionais, a partir da ONU. Ledo engano. O que tem ocorrido até aqui é um grande desacordo.


Autoridades portuguesas desistiram de colocar o combinado em execução formal. Surgiram comentários do tipo “estamos sendo vítimas dos neocolonizadores”. Na verdade, mudança que só alcançaria 1,5% dos termos existentes em nossos vocabulários oficiais, com o fim do trema, a simplificação do uso do hífen e a padronização da acentuação (ou não) de certas palavras.


Alguns apressados marcaram para 2008 o início do Acordo Ortográfico de Unificação da Língua Portuguesa, que abrangeria as oito nações lusófonas, já com a inclusão do Timor Leste. Só que o fato não é verdadeiro. Houve um recuo tático, sobretudo do Brasil e de Portugal. O MEC adiou o emprego das mudanças nos livros didáticos (mais de 120 milhões de exemplares) a serem distribuídos no início do ano letivo de 2008, e a única certeza, hoje, é a de que ninguém sabe quando o assunto voltará oficialmente à tona.


Uma pena, pois assim nos distanciamos de outras línguas de cultura, como é o caso do francês e do inglês, que têm grafia comum para as suas respectivas palavras. No caso do inglês, emprega-se mais de um milhão delas (três vezes do que se encontra no Vocabulário da Academia Brasileira de Letras) — e todas escritas, na Comunidade Britânica de Nações, da mesma forma.


Aqui, pelo visto, vamos continuar nessa divisão que não tem nada de inteligente. Não deveria ser assim. O idioma português é o quinto mais falado do mundo, alcançando mais de 240 milhões de pessoas. Reparem, nos exemplos a seguir, como são quase irrelevantes as divergências existentes. Na Moderna gramática portuguesa, de Evanildo Bechara, Editora Lucerna, 37a edição, há casos em que a língua permite usar ora o advérbio (invariável), ora o adjetivo (variável). Os exemplos são múltiplos e bastante esclarecedores. O primeiro exemplo pode ser encontrado em Camilo Castelo Branco:


“Vamos a falar sérios” ou “Vamos a falar sério”. O escritor Mário Barreto adotou essa liberdade ou dualidade, sem que nada lhe tenha sido cobrado. Outro exemplo está em Augusto Rebelo da Silva: “Os momentos custam caros” ou “Os momentos custam caro”. Podemos citar Alexandre Herculano: “Era esta a herança dos miseráveis, que ele sabia não escassearem na quase solitária e meia arruinada Cartéia.” Meia ou meio? Pelo ouvido, a segunda hipótese seria mais simpática, mas vale a escolha do autor, na construção literária que lhe é peculiar.


A distinção entre adjetivos e advérbios só se dá nitidamente quando a palavra determinada está no feminino ou no plural, caso em que a flexão nos leva a melhor interpretar o termo como adjetivo. Diz Bechara: “Na língua padrão atual, a tendência é para, nesses casos, proceder dentro da estrita regra da gramática e usar tais termos sem flexão, adverbialmente”. E mais adiante: “Entram nessa possibilidade de flexão as construções de tanto mais, quanto menos, pouco mais, muito mais, em que o primeiro elemento pode concordar ou não com o substantivo.


O escritor Camilo Castelo Branco dispôs da seguinte maneira: “Com quanto mais razão, muito mais honra”. Ou: “Com quanta mais razão, muita mais honra”. Existe o caso da palavra alerta, rigorosamente um advérbio: “Estamos todos alerta”. Mas há uma tendência, não recomendada pela norma culta, para utilizar essa palavra como adjetivo, conforme o fez Carlos de Laet: “A moça aguardava com inteligência curta, os sentidos alertas”. Como se deve dizer, a respeito do adjetivo quite: “Estou quite” e “Estamos quites”.


São muitos os mistérios da nossa língua, que é mesmo difícil, como ficou provado em recente encontro em São Paulo, na sede do CIEE, quando o tema foi amplamente debatido.


Correio Braziliense (DF) 29/9/2007