Relutei em tocar nesse assunto, não só porque já se escreveu muito sobre ele, como porque, ao abordá-lo, passo a integrar a “glória” póstuma com que sempre contam criminosos como o autor da recente matança de escolares no Rio de Janeiro. Desprezados, ofendidos, marginalizados, humilhados, ignorados, esses assassinos sabem, porque se espelham em precedentes, que, depois de sua morte, serão finalmente vistos e comentados e sua foto será estampada por jornais, revistas e cadeias de televisão. Como vários deles, inclusive o do Rio, referem-se ou são ligados a alguma crença religiosa, é possível que acreditem na imortalidade da alma e tenham certeza de que, despidos do seu invólucro corporal, virão a assistir à sua transformação em celebridades.
A impressão que às vezes se tem é que ninguém é mais responsável por nada. Acredita-se numa espécie de determinismo para o comportamento humano, que seria sempre efeito de “causas” como a pobreza, a ignorância ou a injustiça. Não tivesse o inocente sido vitimado por elas, não se tornaria criminoso, como se os pobres, os ignorantes e os injustiçados fossem majoritária e necessariamente criminosos. A ruindade, a mesquinharia, a inclinação pela violência, a inveja, a cobiça, o egocentrismo, o cultivo dos maus sentimentos, nada disso é levado em conta. Traumas emocionais e psíquicos estariam por trás de todos os comportamentos nocivos e destrutivos, como se a vida não fosse toda traumática, a começar pelo trauma do nascimento – o trabalho de parto, o ar gélido inflando pela primeira vez os pulmões, a claridade cegante, a perda do aconchego uterino.
Quando o criminoso apresenta problemas de saúde mental, não pode ser responsabilizado pelos seus atos. Então quem pode? O camarada que é sujeito a surtos psicóticos é na verdade dois – um fora do surto e outro em surto – e como tais deveria ser reconhecido pela lei? O assassino cruel é na verdade uma vítima? A culpa é de quem o tratou mal, do colega que o tiranizou, da menina que não quis namorar com ele, certamente com toda a razão? Quem é o praticante dos atos, Satanás? Considerando que este dificilmente atenderá a uma intimação, não há proteção possível para a sociedade. Antigamente se falava em privação de sentidos, expressão hoje ridicularizada, sem se atentar que apenas mudou de nome e está cada vez mais na moda. O assassino, em surto psicótico e com a maldade instilada em seu ego indefeso por uma sociedade pervertida, só fez reagir contra seu sofrimento, coitado.
Coitado, sim, em termos, digamos, filosóficos. Coitado, em última análise um infeliz de nefanda memória, cujo corpo nem a família quis receber, uma besta humana, um celerado impiedoso que, se existe inferno, já deve ter chegado lá – tudo bem. Agora, coitado mesmo, uma ova. Coitados de tantos jovens trucidados bárbara e sadicamente, coitadas das mães que jamais se recuperarão do golpe recebido, coitados dos pais cujo sofrimento jamais cessará, coitados dos sobreviventes que jamais deixarão de carregar essa lembrança de terror, coitados de nós todos, lançados no horror de tanta aflição, participantes, mesmo muito distantes, da tragédia. Acho que não dá para se pôr no lugar das mães e dos pais atingidos, somente eles sabem do que passaram, do que estão passando e do que nunca passará. Não há descrição possível, não há consolo.
Se por acaso esse indivíduo não houvesse morrido, provavelmente teria que ser protegido 24 horas por dia, porque acredito que, mesmo na cadeia, tentariam liquidá-lo. E o caso dele é clamoroso demais para que ele fosse gozar da impunidade de que muitos outros assassinos desfrutam. Mas, como doente, seria no máximo internado. E teria idade para até esperar avanços na psiquiatria ou nas ciências neurológicas, talvez uma droga ou tratamento que o livrasse permanentemente de sua loucura, o que lá seja isso. Tomada essa droga ou feito o tratamento, ele poderia ser dado como curado e posto em liberdade para buscar a felicidade até então negada, pois não teria sido ele o autor do crime, mas o “outro”, ou Satanás, ou alguém igualmente inimputável.
Só que gente ruim existe. Às vezes, é até uma questão geográfica, mas certos traços da chamada natureza humana são universais. É antipático e politicamente incorretíssimo dizer isto, mas tem gente que nasce ruim sob um ou mais aspectos e tem gente que nasce muito ruim. Por que a grande maioria dos que sofrem do mesmo distúrbio não mata? Embora possa ser cultivada e ampliada, a ruindade não é adquirida, nem nunca existiu o idílico bom selvagem de Rousseau. Ao contrário, pesquisadores que buscaram exemplos dessa boa – como direi? – selvageria reuniram estatísticas interessantes sobre povos desse tipo e constataram que, entre muitos deles, as mortes violentas são bem mais frequentes que entre os malvados civilizados. Claro, há questões culturais e antropológicas nisso, mas os selvagens são tão vulneráveis a problemas de personalidade ou comportamento quanto os civilizados, do contrário não pertenceriam à espécie humana, seriam seres à parte, não sujeitos às fraquezas e defeitos dos demais. A filosofia do nosso sistema penal é a recuperação do criminoso, mas tem gente que é ruim irrecuperavelmente e quem quiser pode chamar isso de doença. Que diferença faz, notadamente para as vítimas?
Costumamos citar países nórdicos como exemplo para nós. Lembro agora que, na Alemanha, pelo menos até o tempo em que morei em Berlim, certos condenados cumpriam suas penas integralmente, mas, ainda assim, não eram libertados. Acreditando que continuariam perigosos, se voltassem a circular, o juiz podia decretar que permaneceriam na cadeia, ou mais ou menos na cadeia. Aqui eles são logo soltos, até porque a culpa não é deles, é da sociedade. Deve ser por isso que a gente mora atrás de grades.
O Globo, 17/4/2011