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O coco e as mulheres

 

No domingo passado, creio que se armou aqui uma confusão, causada não tanto por manquitoladas redacionais quanto por um assunto intrometido, que acabou envolvendo as mulheres, a criação artística (que são a mesma coisa, encantadora leitora) e outros temas sem nenhuma relação aparente com o que eu tencionara escrever. É que eu tinha lido uma reportagem vibrantemente dedicada a redimir o coco, especialmente sua gordura. E aí achei que seria o assunto da semana passada, mas não foi. Prometi endireitar as coisas hoje, não é possível essa quebra de hierarquia, o assunto mandando no escritor, tenho que mostrar quem é que pilota aqui este teclado.

O banimento da gordura do coco foi altamente científico, respaldado pelas mais respeitáveis pesquisas. E sua redenção triunfal (sim, porque não é que ela tenha deixado de fazer mal; é muito mais que isso, ela agora traz benefícios que só faltam prometer vida eterna e uma médica americana diz e escreve que óleo de coco cura - isto mesmo, cura - o mal de Alzheimer) também é altamente científica e igualmente respaldada. Para os religiosos que acreditam que, uma vez estabelecida uma conclusão científica, ela é imutável, essas coisas devem ser perturbadoras. E, mesmo para quem não tem essa fé, é também perturbador haver passado grande parte da vida fazendo o errado porque assim mandava a "ciência" e evitando o certo pela mesma razão, principalmente quando essas ações redundaram na perda de prazeres irrecuperáveis. Agora que morreu há anos a tia portuguesa que fazia uns doces d'ovos concebidos no paraíso e dois ovos estrelados no café da manhã só são conhecidos por fotografias? Adianta mais nada? Claro, os poucos chatos entre vocês (sempre tirante a formosa leitora), vão estragar tudo e lembrar que o açúcar faz mal. Mas todo mundo sabe que eu me refiro mesmo é aos ovos, aos ovos tão brutalmente sacados de nossa dieta. E agora vêm com uma conversa de que não é bem assim, que, havendo moderação, evitando-se frituras, etc., etc.

Tudo bem, acatemos quem gosta de viver assim, não sofreu ou sofre o Trauma do Ovo, o Trauma da Margarina, o Trauma do Chocolate, o Trauma do Café, entre tantos outros. Acho que a maior parte de nós, para nos livrarmos do inferno em vida que são as ladainhas desse pessoal, topa concordar que comer é perigoso, ponto. Não existe nada neste mundo, nem alface (acusada de grande broxante desde a Antiguidade), que não faça algum mal aí, em alguém aí. Além disso, no tempo em que manteiga matava na hora e margarina era o único jeito de evitar fazer oito safenas, há quem alegue que o jeito que a margarina dava mesmo era no escoamento de estoques excedentes de milho e outras matérias-primas. Ou seja, haverá talvez de assistir alguma razão a quem vincula o que a "ciência" diz que é bom àquilo que se quer vender.

Quando eu era menino vendiam-se cigarros em farmácias. Não de tabaco, mas medicinais mesmo. Havia uma marca, Catedral, que era para eliminar - isto mesmo - o vício de fumar. Mas, vil memória, não tenho certeza sobre se o Catedral era para que se abandonasse o vício ou se era o da asma. Apelo ao terceiro-idadista presente no recinto para que deixe de negar a idade e lembre: receitavam-se - verdade científica - cigarros para asma, bronquite e outros males respiratórios. Mais ainda: Papai Noel fumava e fazia comerciais de cigarro. Quem acha que desta vez fui longe demais pode procurar na internet e verá o bom velhinho pitando uma guimba, soprando uma fumacinha e recomendando, se não me engano, Pall Mall. Muitas casas devem ter sido incendiadas por esse tabagista irresponsável, deixando cair brasas nas árvores de Natal. E havia mais. Médicos, não atores, mas médicos mesmo, formados e também altamente científicos, vestidos em seus trajes profissionais e sentados às suas mesas de consultório respondiam cientificamente à pergunta de um entrevistador: "E o cigarro que o senhor fuma, doutor?" O doutor mandava o comercial (acho que esse fumava Camel, mas não tenho certeza), embolsava a gruja e o freguês ia cultivar o enfisema pulmonar dele cientificamente.

Os mais velhos também lembram do tempo em que se cozinhava com banha de porco. Aí deram para falar em colesterol e banha de porco não servia mais nem para lubrificante de trem. Passou-se a cozinhar com a altamente científica gordura de coco, vegetal, pura, natural. Branquinha, vinha numas latas com algo verde no rótulo. Pelo menos as latas da marca mais conhecida, que aparentemente todo mundo usava: Gordura de Coco Carioca. E por aí marchávamos, em grande segurança alimentar, quando estourou nova reviravolta na ciência. Falha nossa, tudo errado, a gordura de coco é ainda mais mortal que a de porco! E aí não sei que fim levou a Carioca. A julgar pelo consumo, a gordura de coco devia envolver uma grande rede de fornecedores, atacadistas e varejistas. Não deve ter sido comércio pequeno, mas nada comparável ao dos milagrosos óleos saídos a cada ano, o mais recente sempre mais sadio que o anterior, com um lugar especial para a atual voga do azeite de oliva virgem (no meu tempo, ele ainda não fazia exame pré-nupcial).

Vou ter de pedir um intervalo técnico. Criei coragem, olhei o que escrevi até aqui, minhas suspeitas se confirmam. Corro novamente o risco de ser processado, agora não só por militantes feministas como por veicular propaganda enganosa. Que é que o coco tem a ver com as mulheres? Juro que não é truque de folhetineiro barato, é incompetência mesmo. O óleo de coco está de fato sendo cientificamente anunciado como muito importante para as mulheres. Não sei se é o caso de elas desconfiarem, tenho algumas outras lembranças de meu tempo que ajudarão a pensar no assunto. Assunto de que há dois domingos não consigo tratar, mas domingo que vem eu acerto a vida dele.

O Globo, 13/5/2012