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O céo é o limite

 

Vejamos. Sim, muita coisa a comentar. Que é que está mesmo anotado aqui? Não escrevo à mão e, quando escrevo, não entendo nada no outro dia, já tenho direito a pelo menos um grau honorário de médico. “Primeira-dama: Nel mezzo del Cammin”, que diabo tem a ver Dante com a primeira-dama? No meio do caminho... Ah, sim, claro. No meio do caminho de sua vida, a nossa primeira-dama recebeu passaporte italiano. Temos alguma coisa a ver com isso? Segundo li, a primeira-dama tirou passaporte italiano para si e para os filhos, “para um caso de necessidade”. Justo, justo, nunca se sabe. Mais uma vez, damos um belo exemplo de pioneirismo, pois devemos ser o único país onde a esposa do presidente pegou uma cidadaniazinha extra, para o caso de necessidade.


Não conheço a lei italiana e não sei se agora, querendo, a primeira-dama pode transformar seu ilustre cônjuge em cidadão italiano também. Casou com italiana, italiano será. Deve ser possível, ainda mais se tratando de um povo sentimental como o italiano. E o caso de necessidade? Bem, sempre pode ser que o presidente se desgoste com o Brasil, depois de fazer o maior governo da História “deste país” (promovido recentemente da condição de “esse país”) e parta para presidir a Itália. Falando como ele fala, deve fazer sucesso, ainda mais que lá o presidente não governa, mais ou menos como atualmente aqui. Quem governa é o primeiro-ministro, de que no momento andamos meio em falta, mas pode ser também um italiano, na condição de oriundo, o dr. Palloci.


Não creio, contudo, que venhamos a ter essa sorte, até porque certamente haverá algumas formalidades para a concessão de cidadania tão especial quanto a de um presidente, como, por exemplo, passar por uma entrevista. Aí, apesar de seu talento oratório, o presidente pode falhar. Não por nada de desabonador, porque será muito simpático, envergará trajes típicos napolitanos, dirá que torce pelo time da casa em que cidade estiver e prometerá o que o mandarem prometer, como aqui. Mas é que o presidente, como nas suas entrevistas aqui, dirá que não sabe de nada nem cabe ao presidente saber de nada, só cabe presidir, ou seja viajar, inaugurar coisas que preferivelmente requeiram que ele acione uma geringonça qualquer e bravatear inanidades em linguagem pós-neandertalesca. Saber mesmo de alguma coisa, notadamente do que aconteceu e acontece antes e durante seu mandato, ele não vai saber, nós todos vimos como ele não sabe de nada. Nem mesmo se vai concorrer à reeleição. Ele só sabe, ou imagina saber, que a gente é besta e todo mundo nasceu ontem, embora eu ouse lembrar que quem se acha sabido ou malandro demais acaba se ferrando. Claro que todo mundo acreditou que ele não sabe mesmo se vai se candidatar e a noção que a gente tem, de que ele gostaria de permanecer o resto da vida lá, é puro preconceito, coisa das elites, complô da imprensa, conspiração da direita, artes da CIA e por aí vai.


Não, não, esse caso da Itália é muito remoto para se pensar nele agora. Vamos ver se, no carnaval, haverá um Baile do Passaporte ou Uma Noite na Toscana, na Granja do Torto. Aí a gente começa a desconfiar de alguma coisa. Antes, é má vontade. Vamos pensar, por exemplo, que é verdade que o PIB foi mixuruca e promete continuar assim. Mas nós pagamos o que devíamos ao FMI, viram, viram? Agora eu quero ver eles falarem mal da gente e deixarem de convidar o presidente para exercitar os tradutores de besteirol da Comunidade Européia e, com certeza, o jornal eslovênio de maior circulação fará uma matéria amplamente divulgada aqui, cantando as belezas e os encantos do Brasil.


O espetáculo do crescimento já está rolando e vai rolar neste país (vou parar de dizer “Brasil”, a moda presidencial é “este país”, que já fica um pouco mais presente que o antigo “esse país”, mas continua soando meio “eles lá e eu cá”) de uma forma imprevista, o povo brasileiro realmente nunca decepcionou. E, ao apagar das luzes deste ano, descubro que, mais uma vez, este país é alvo de um milagre. Não é que o Estatuto do Idoso abre condições de trabalho para uma imensa massa de velhotes do meu tope e já está começando a fazer isso? Por exemplo, já existem locadoras de idosos (não estou brincando, deu nos jornais), através das quais o freguês aluga os serviços de um idoso, para, por exemplo, entrar na fila preferencial e cuidar rapidamente dos seus compromissos bancários. Imagino que o serviço se estenderá para deficientes e grávidas, com maior expansão ainda do que a prevista.


Chego quase ao delírio, quando penso no destino alcandorado deste país. (Acho que, um dia destes, meio aporrinhado com a entrevista italiana, ele vai conseguir pronunciar, já não digo “Brasil”, que seria pedir demais, mas “nosso país” - aqui, ó, para esses italianos descompreendidos.) Os benefícios serão imediatos, porque o governo criará de pronto a Contribuição Provisória (Permanente) sobre Locação de Idosos, Grávidas, Deficientes e Congêneres. Isso terá imediatos efeitos sobre o superávit primário, que ninguém sabe direito o que é mas é obviamente sagrado. É bem verdade que o brasileiro não se emenda e a economia informal vai acabar se enquistando nesse grande nicho econômico. Eu mesmo, idoso em folha, estalando ainda, vou fazer uns biquinhos nas portas dos bancos. E, quem sabe, posso até me tornar o personal idoso de algum abonado. Terei que ficar de olho na repressão que virá e, com toda a certeza, reservar uma verba que, neste país, é muito útil para lidar com algumas autoridades, a verba não-contabilizada, contribuição maiúscula dos atuais líderes para dar nome ao desairoso “por fora”. Vamos comemorar, inventariar as nossas bênçãos. Até mesmo a de que, neste país da pizza, o presidente é ítalo-brasileiro.




O Globo (Rio de Janeiro) 8/1/2006