A determinação do respaldo de Lula aos aliados contra a CPI no caso de Roberto Jefferson pode se ter transformado no meridiano invisível, de passagem para o longo prazo de sua presente estratégia de poder. Ou seja, a da absoluta prevalência da realpolitik sobre a volta à iniciativa programática, no a que veio ao Planalto o PT. É a pertinácia desta última crença, inclusive, que tem permitido a marcante disciplina, ainda, do partido. Seus próceres mais importantes querem a mudança de dentro, contra toda ruptura pelo purismo doutrinário. O PSOL, de Heloísa Helena, não fez verão, nem ampliou a fratura, acreditando num brusco amadurecimento do fator ideológico no alinhamento político do País. A própria idéia-mestra, original, da opção socialista parece esfumar-se, como remota estrela polar. Mais ainda, a própria articulação, a prazo médio, do querer político não marcha para um programa de onde se possam cobrar prioridades e, sobretudo, tempos definidos de expectativa. A candidatura Plínio Sampaio, por exemplo, para a próxima presidência do PT é exemplar na aposta pela superação da estrita realpolitik em novo mandato.
Mesmo a curto prazo o estrito pragmatismo do campo majoritário enfrenta uma inesperada onda do velho moralismo. A abertura da CPI no incidente dos Correios, pondo a perigo a aliança com o PTB, pode ter aberto uma caixa de Pandora, nos limites em que o aliancismo partidário se tornou sinônimo não do risco, apenas, do clientelismo. Mas do mergulho numa parceria com a corrupção pertinaz do sistema. É, de agora, a denúncia do presidente da Comissão de Constituição e Justiça, Antonio Carlos Biscaia, de que na Câmara 202 deputados, sobre 543, se vêem hoje sob a sombra de Comissões de Inquérito, da suspeita de abuso de poder, à das criminalidades mais explícitas e inescapáveis.
De toda forma, o presidencialismo de coalizão, que responde pela superestabilidade política ao classicismo da política econômica, não permitirá à oposição engalanar-se com o purismo político como o antídoto às lógicas da expectativa social do País que votou em Lula, e perseverará na sua opção. O sucesso do presidente, inclusive, no monopólio de sua captura do inconsciente político brasileiro, traduz um capital de reconhecimento e fidelidade para além dos sucessos imediatos do programa, ou do sentimento concreto e generalizado de uma melhoria social.
Não se trata, apenas, de atentar à constante em que a popularidade de Lula se destaca do próprio Governo. Não se contamina pelas suas perplexidades e ganha pontos, independentemente da sorte do regime. Traduziu a chegada lá, na festa do operário no Planalto, que continua na mobilização deste país de fundo, imune, nas suas certezas, a qualquer contabilização da pauta de perdas e ganhos de um primeiro mandato. E Lula tem assegurado, no prodígio de sua comunicação, esta identidade básica, que nada tem do carisma, mas desta pedagogia incessante do contato, chegado à sabedoria da ratificação do óbvio que é a linguagem do entendimento popular.
Esta mediação é só sua, na mesma medida - como tão bem vem de salientar Cristovam Buarque - em que o PT, no exercício do poder, mantém-se absolutamente fiel a uma ideologia sindical, distinta do que fosse responder ao abismo da nossa marginalização coletiva. Ou seja, àquele País dos 30 milhões de habitantes, que vivem não do ganho de uma plataforma de benefícios, mas de saída, das reiterações mais primárias de um reconhecimento social. Todo desgaste da máquina política de hoje, nascida da projeção burocrática sindical, substituindo o clientelismo, responde às exigências do proletariado industrial urbano que chegou ao poder. Não foi outra a primeira matriz política de Lula, e com a qual continua a se identificar o partido da realpolitik, frente ao rigor doutrinário, ou a uma velha política de massificação das expectativas eleitorais. Mesmo porque os riscos da opção pelo campo majoritário têm deixado o PT imune a toda queda no antigo populismo.
A legenda encontrou o reclamo contumaz de uma política de quadros, e de identidades que vem repermeando o aparelho do Estado, frente à instância tecnocrática do governo anterior. A nova lentidão do sistema, a permanência do assembleísmo, o supercontrole da decisão, atestam de uma primeira penetração do melhor tradicionalismo operário, no âmago do novo exercício de poder. Nem por outra razão o grande laço de integração com os megassindicatos urbanos é a maior garantia da continuidade petista que agora, inclusive, traz o peso da mesma organização à área rural e ao movimento dos Sem-Terra. Só há a ressaltar na monumentalidade da parada em Brasília, na marcha de 18 de maio último, a opulência do espetáculo, até por sobre o caráter reivindicatório de urgências no seu petitório. Os choques finais nasceram muito mais da desnecessária e provocadora ostentação policial, que de uma ruminação concertada dos manifestantes, ou da passagem da marcha à reivindicação violenta.
As oscilações da popularidade do presidente continuarão a independer do vaivém dos resultados efetivos deste fim do primeiro mandato. Sabe-o, de partida, a própria oposição, imprensada entre um moralismo de pernas curtas e as concessões ao populismo das antigas legendas do pedetismo brasileiro. Virá a cobrança, por certo, no segundo tempo de tudo que o PT se torna culpado pelo atraso da sua prestação histórica, ao optar pela estratégia do presidencialismo de coalizão. O Planalto corre o risco continuado do anticlímax, nascido de um enorme esforço contra a corrente, na presente situação internacional. A garantia da estabilidade da conjuntura externa é o suposto obrigatório da verdadeira plataforma da mudança, frente às contradições que o crescimento industrial do País e a busca externa de sua competição produtiva acarretam à política de emprego.
Uma aceleração das políticas redistributivas a partir do avanço da reforma agrária sofrem dos freios em que as políticas estritamente institucionais se contaminam da cautela da conjuntura, típica da área econômica. Tal como a revalorização da iniciativa do Estado na vida econômica já poderia ter garantido um dramático avanço das políticas de emprego a partir do desenvolvimento urbano e da infraestrutura nacional, na inversão com as obras públicas, paralisadas ainda pela miragem da terceirização recebida como pacote envenenado do governo anterior.
Um novo governo Lula não pode ser apenas o herdeiro de si mesmo. Mas hesita ainda em saber se vai às urnas com a só garantia do continuísmo - que a mais não lhe cobra o seu eleitorado de fundo, na letargia do seu fascínio - ou se assegura, de fato, o a que veio o PT. Tarda o seu recado, entre um futuro de retorno ao populismo de massa, ao evangelismo político, ou a uma tentação moralista do Brasil apeado, de vez, como sistema, na avalanche eleitoral de 2002.
Jornal do Commercio (Rio de Janeiro) 27/05/2005