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O Brasil na crônica

 

"Crônica" era "relatório", "narrativa", "reportagem", com histórias de naufrágios, de uma batalha, de uma terra descoberta e dominada, de uma aventura.


Quando escrevi meu livro "Alcácer-Kibir", li e reli as "crônicas portuguesas", principalmente as de Gomes Eanes Zurara, "A Crônica de Guiné" e a "Crônica da Tomada de Ceuta", além de outras narrativas como a "Crônica de Dom Henrique" e as de Dom Duarte, do Infante Santo e de Afonso V e a de Dom Sebastião em terras d'África, que era o assunto que mais me interessava.


Até os naufrágios de navios portugueses - que foram muitos - serviram de matéria em Relações impressas em Lisboa. "Relações" , como sabem, era uma palavra que se usava para dizer "Informação", "Relatório", quase que reportagem. As Relações reportavam um grande acontecimento. E essas relações, impressas em Lisboa, preservadas nos arquivos portugueses, mais tarde levaram Fernando Pessoa a colocar em seus versos: "O sal das lágrimas de Portugal/ eram o sal do mar".


Os vinte relatos de naufrágios publicados em português entre a segunda metade do século XVI - quando os portugueses povoavam o Brasil - e o final do século XVII, são crônicas de reportagens do melhor jornalismo. Às vezes o cronista posterior a Gutemberg provocava o aparecimento de folhas de jornais com notícias e idéias.


A mim me parece que Montaigne é o antecessor dos cronistas dos séculos posteriores. A palavra "ensaio" por ele adotada muitas vezes está próxima da crônica. Era um moralista, no bom sentido que se atribui aos que analisam o comportamento das gentes.


Quando chegou ao ápice da sua vida e da sua obra, declarou-se "inteiramente desprovido de qualquer assunto específico, atitude que o cronista busca, em geral, ater-se no percorrer o mundo circundante com olhos analíticos, devotado ao devaneio, à meditação e à análise". Com isso podia Montaigne estar descrevendo um modo de o jornalista se aproximar da realidade.


Muitos de nós já nos indagamos dos motivos de termos no Brasil tantos e tão bons cronistas. O maior de nossos escritores, mestre no romance, no conto e na poesia - Machado de Assis - foi cronista profissional, obedecendo à natureza do métier - porque todo métier tem sua natureza - e com isto registrou com perfeição o final do Segundo Império e os primeiros decênios da República no Brasil.


Executou os mais diversos tipos de crônicas, foi romântico, professoral, cômico, elucidativo; analisou a política do Tempo (com T maiúsculo), falou em obras públicas, fez comentários sobre sessões do Legislativo, contou anedotas, comoveu seus leitores, foi a seu modo formador de opiniões, comentou assuntos internacionais, analisou figuras da política brasileira, falou de moda e de modos. E o que foi o Brasil, entre meados do século XIX e o ano de 1908, permanece até hoje nas palavras com que Machado vestiu seus país e seu tempo.


Na mesma época outros escritores se dedicavam entre nós à crônica. Raul Pompéia escreveu do Rio uma série de crônicas para o Jornal de Juiz de Fora e José do Patrocínio, Olavo Bilac, Alberto de Oliveira, Lima Barreto, Pardal Mallet, João do Rio - uns mais, outros menos - assumiam a crônica, permanente ou circunstancial, como elemento importante no difundir idéias e mostrar como funcionava, o país.


No começo nossa crônica jornalística chamou-se "folhetim" e o cronista era um "folhetinista". José de Alencar, por exemplo, em sua atividade de cronista, usou, na sua colaboração em jornal, trechos como este: "No entender deste folhetinista..."


Depois de Machado de Assis o escritor a ter sido um cronista eminentemente carioca foi João do Rio, cujo livro A alma encantada das ruas postou-se como ápice no gênero crônica entre nós.


Em seguida foi a vez de Humberto de Campos ocupar o trono da crônica. Poucos escritores tiveram em vida a popularidade de Humberto de Campos. Ao morrer, em 1934, deixou muitos volumes de crônicas, vendidos em todo o Brasil. Durante minha infância e juventude eram livros comentados e citados, com grande alegria da editora que deles detinha os direitos.


A partir da Semana de Arte Moderna - com o desenvolvimento da indústria do conhecimento no Brasil, jornais mais bem organizados, máquinas impressoras se renovam, primeiro de vinte em vinte anos, depois de dez em dez e, mais tarde, com a informática, até submetidas a pausas mais curtas - o cronista se tornou um personagem importante na imprensa brasileira. Praticamente todos os escritores de algum nome, poetas e prosadores, passaram a escrever crônicas para jornais e revistas.


Como cronista puro, dono de seu instrumento e de sua linguagem poética, destacou-se na literatura brasileira o nome de Rubem Braga. Desde que, morando ainda em Belo Horizonte e muito jovem, começou a escrever, viu-se que ali se achava um escritor que escolhera o seu gênero e a ele daria o melhor de si mesmo.


Seguiram também esse caminho Rachel de Queiroz, Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Cecília Meireles, Vinicius de Morais, Clarice Lispector, Paulo Mendes Campos, Oto Lara Resende, Antonio Maria, que, entre muitos outros, prestaram a sua obediência ao pedaço de papel de que é feito o jornal.


Nestes primeiros anos do Século XXI, constitui a crônica um chão necessário que segura a estrutura dos jornais, diários ou não, em estilos vários que não se afastam muito dos folhetins de antigamente, quando a ironia de alguns, a veemência de outros, a revolta de muitos, revelam os caminhos do momento e nos mostram na luta para com a diversidade essencial da condição humana.


 


Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro - RJ) em 05/08/2003

Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro - RJ) em, 05/08/2003