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O bicho do Oriente

 

Não sei por que associação de ideias, ao olhar e meditar sobre o imbróglio em que se meteram os Estados Unidos nas guerras do Oriente Médio, me veio à cabeça o "Manual de Zoologia Fantástica", de Jorge Luis Borges, livro em que repassa uma visão poética na construção dos animais imaginados, mistura de todos os que vivem com os que foram criados pela mitologia.

 

Ele os compara ao que pensa um menino quando pela primeira vez freqüenta um zoológico e vê águias, girafas, bisões. Tudo aquilo tem uma aparência de fantástico e de misterioso.


Ao ver os problemas que os EUA enfrentam no Oriente Médio, a guerra escondida e fluida contra o terrorismo, imaginei usar um daqueles animais de Borges para representar o que acontece ali.

 

Tudo começou nas Torres Gêmeas, na fobia de Bush e no medo que semeou para levar os americanos a guerrear no Afeganistão, em Israel, na Palestina, no Paquistão, no Iraque, no Irã, com lealdades desfeitas, seitas religiosas fragmentadas e uma simulação de uma missão plural, quando tudo recai e é pago pelo leão que se parece com uma "chancha" (porca) fantasma acorrentada de Borges.

 

Veja-se o caso do Paquistão. De neutro passou a aliado e agora borbulha uma desconfiança de que eles estão treinando talibãs e, mais ainda, aproveitando sua posição estratégica e o vazio criado pela guerra para aumentar seu potencial atômico —o que apavora os EUA. Está produzindo mais ogivas nucleares do que todos os países num instante em que o primeiro item da agenda da segurança mundial é o controle das armas atômicas, objeto de tratado recente entre EUA e Rússia. Calcula-se que o Paquistão tenha de 70 a 90 bombas. E a Índia, vai ficar de braços cruzados ou irá na mesma direção?


No Iraque, a luta começou no medo das armas de destruição em massa, que se verificou não existirem e funcionaram só como uma armação para justificar a guerra. Como Saddam era sunita e 80% da população é xiita, com a saída de fazer a democracia funcionar ganharam os xiitas, e todos vislumbram ali um novo regime dos aiatolás, teocrático.


No Irã, a queda de braço vai continuar, e o país acha que só será respeitado e ouvido se tiver poder nuclear. Essa doutrina, concebida por Israel, passou ao Irã, à Coréia do Norte e não se sabe aonde irá chegar. Ainda mais com o perigo de que os terroristas tenham o seu sonho de consumo, uma bomba, o que não é difícil, porque no Paquistão 130 mil pessoas trabalham na área. É muita gente para vigiar e conter. 


Vendo assim, é justo que se imagine, como Borges, que as coisas fossem bichos e, as que estão acontecendo, um Behemoth, elefante e hipopótamo.


Folha de São Paulo, 3/12/2010