BUENOS AIRES - Sou tomado nesse momento por um duplo sentimento de perda: a do amigo e a do homem de Estado. Raúl Alfonsín foi, sem dúvida, uma das maiores figuras humanas que conheci, e foi também o homem que abriu, com sua coragem, a integração latino-americana.
Tudo que fizemos para inverter o processo histórico de hostilidade entre Brasil e Argentina, transformando-o num processo de integração, não teria sido possível sem Alfonsín. Ele tinha a visão continental, a firmeza de convicção e a grandeza política para dar os passos decisivos.
Ele havia assumido a Presidência da Argentina pouco antes de o destino me colocar na Presidência do Brasil. Tivera de sanar as feridas que dividiam aquele país: processara os guerrilheiros e os comandantes militares, e chamara Ernesto Sabato para a Comissão Nacional de Pessoas Desaparecidas.
Desde o nosso primeiro encontro, em Iguaçu, transformamos nossa relação de chefes de Estado na relação de dois amigos, que se estendeu a nossas famílias. Grande conversador, homem de extraordinária cultura, era uma pessoa simples, de um convívio ameno que imediatamente cativava.
Sua coragem era enorme. Em Itaipu, que os militares argentinos tinham como um ponto de conflito, não hesitou em tomar a iniciativa de visitá-la e com este simples gesto desmontar toda a discussão sobre os danos que a usina poderia causar à Argentina. Mais tarde levou-me a Pilcaniyeu, à empresa nuclear argentina, com a nossa equipe de cientistas. Eu o convidei para inaugurar a usina de Aramar, no Brasil, onde havíamos desenvolvido o processo de enriquecimento do urânio, e a abrimos aos cientistas argentinos.
Com suas virtudes, firmeza e autoridade moral Alfonsín consolidou as instituições argentinas e foi um exemplo para a América Latina. Será sempre o paradigma do político honrado e de ideias de vanguarda.
Juntamente com Julio Sanguinetti, lutamos para restaurar a democracia em toda a América do Sul, e assim aconteceu, e a ideia generosa da integração que iniciamos é irreversível. Os desvios de nosso projeto serão superados e nossos filhos verão uma América do Sul integrada política, física, econômica e culturalmente.
Nesse momento Raúl Alfonsín será lembrado como o homem que tornou esse sonho possível.
E eu, que tive a felicidade de ter com ele uma amizade profunda e duradoura, um dos orgulhos da minha vida, o lembrarei sempre, com os olhos úmidos e o coração apertado, mas sabendo que sua figura é maior que o tempo que viveu.
Jornal do Brasil, 3/4/2009