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O agachamento do Japão

 

Alguns séculos antes dos best-sellers de hoje, um livro português inaugurou o atual sistema de apreciação de um escrito pelo tamanho de sua venda. Parte-se do princípio de que, sendo o mais vendido, seja determinado livro também o melhor. Então já havia Gutemberg aperfeiçoado a técnica de impressão que viria colocar o objeto chamado livro nas mãos de qualquer pessoa. As quase oitocentas páginas de "Peregrinação", de Fernão Mendes Pinto, saíam com atraso, pois seu autor morrera 31 anos antes do aparecimento do livro em 1614.


Antes mesmo de sua segunda edição em Portugal, "Peregrinação" teria quatro edições na Espanha, três em Paris, cinco em Amsterdã, duas em Londres e uma em Estrasburgo.


Note-se que, entre os países em que o livro obtinha sucesso, estavam exatamente alguns dos que fariam tudo, a partir de então, para destruir o prestígio de Portugal no Oriente e tomar o seu lugar como sucessores dessa influência. Foram a Inglaterra e a Holanda, sendo que, no caso dos holandeses, a tentativa de domínio atingiria também o Brasil.


Nasceu Mendes Pinto por volta de 1509 - portanto não muito depois das façanhas de Vasco da Gama e Cabral. Deixou Montemor-o-Velho, sua terra natal entre os 10 e os 12 anos de idade e, em Lisboa, embarcou: numa caravela que foi atacada por um corsário francês. Abandonado, com outros sobreviventes, numa praia deserta, de lá conseguiu chegar a Setúbal, onde exerceu várias atividades, mas o que ele queria era engajar-se num navio que fosse para o Oriente.


Afinal, em 1537, embarcou para a Índia numa esquadra que partiu de Lisboa a 11 de março. Viveu vinte anos no Oriente. Foi soldado, mercador, corsário, escravo, Embaixador de um Vice-Rei da Índia, chegou mesmo a ser noviço jesuíta, ficou milionário, em seguida paupérrimo, lutou em vários países, esteve muitas vezes perto da morte.


Não há dúvida de que tinha muito que narrar e foi responsável pela ida de inúmeros europeus ao Oriente em busca de aventuras. Mentiu muito em seu livro? Acusaram-no disso, deram-lhe inclusive o nome de "Fernão Mentes Minto", ao invés de Fernão Mendes Pinto.


A presença de Portugal no mundo - de sua gente, de seu idioma, de seus hábitos, de sua religião - tornou-se também mais forte em 1543, quando ocorreu o que se pode chamar de "O achamento do Japão". Mendes Pinto narra a viagem e o português Jorge Alvares escreveu sobre essa chegada ao Japão e o espanto dos habitantes da ilha diante de uma espingarda portuguesa.


Os japoneses, que jamais haviam visto uma arma de fogo, aprenderam logo a fabricar espingarda - e chegaram a escrever livro sobre as várias maneiras de atirar com essa arma de longe e de perto. Na ilha de Tanixumá usaram dos portugueses suas espingardas e mataram vinte e seis marrecos. Diante disto, o rei local pediu aos portugueses que ensinassem sua gente a fabricar a arma.


Conta Fernão Mendes Pinto: "De modo que o fervor deste apetite e curiosidade foi dali por diante em tamanho crescimento que, ao partirmos, que foi dali a cinco meses e meio, havia na terra passante de seiscentas espingardas". Fernão informa ainda que, dois anos depois, haveria mais de trinta mil espingardas na capital do reino.


Na mesma época, já São Francisco Xavier estava em Nagasaki, onde até hoje existe uma catedral católica freqüentada por japoneses. Saiu na Japão, na época, uma "História de Japan", em português, e uma série de Fábulas de Esopo em Latim, bem como da "Imitação de Cristo" ("Contemptus Mundi Jembu"), de Thomas a Kempis, livros em geral impressos em Nagasaki, editados por portugueses.


Tal como na carta de Pero Vaz de Caminha, também o português quinhentista e seiscentista de Mendes Pinto merece atenção. O idioma português conquistara já então um poder de síntese e uma diversidade inesperada e criativa de vocabulário. Vale a pena que se atente também para a direiteza do estilo de Mendes Pinto que, andando a cavalo, pé, de barcos a remos, de veleiros pequenos e grandes, às vezes nadando, outras caminhando ou correndo, jamais perde contato com o meio-ambiente, as árvores, os bichos e muitas vezes a inesperada presença de gente que está onde não devia e que leva tempo a se descobrir se é inimigo ou não.


Seu estilo é típico da época, mas também tem ligações com os diversos modos por que o idioma veio passando e, de vez em quando, nele descobrimos um anúncio do que escritores de português, no Brasil, de hoje, possam estar buscando, nesta nossa permanente luta em prol da expressão ao mesmo tempo clara e múltipla.


E o livro narra cerimônias, cerimônias de morte e cerimônias de vida, num panorama do Oriente que os leitores europeus daquele tempo liam com espanto e admiração. "Peregrinação" mantém-se como o documento em prosa que revelou o pioneirismo português que chegou primeiro ao Oriente, conheceu-lhe a força e a beleza e nele deixou a marca de sua civilização, que civilização foi.


A "Peregrinação" de agora, em dois volumes, é um lançamento da Nova Fronteira. Edição e adaptação de Maria Alberta Menéres. Publicação apoiada pelo Instituto Português do Livro e da Leitura.


 


Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro) 14/2/2006