Portuguese English French German Italian Russian Spanish
Início > Artigos > Novas variações sobre religiosidade

Novas variações sobre religiosidade

 

Norberto Bobbio, falecido em janeiro do corrente ano, concedeu a um de seus discípulos, Raffaele Luine, memorável entrevista que vem esclarecer uma série de questões relativas à fé, aos poderes da razão, à heterodoxia e à religiosidade.

Bem poucos têm escrito sobre a religiosidade, apresentada pelo grande pensador piemontês como o estado de espírito em que o ser humano se sente "imerso do mistério", na agonia insaciável da procura da verdade, sem saber dizer sim ou não às perguntas que emergem do íntimo de seu ser.


Agon quer dizer dor e paixão e, ao mesmo tempo, amor por algo que não podemos definir e muito menos expressar.


Antes de Santo Agostinho e de Emmanuel Kant, ninguém soube tratar, a meu ver, como o filósofo italiano, com tão emocionante sensibilidade, das questões transcendentes, às quais não nos é possível responder ou deixar de responder com um mínimo de certeza.


Bobbio chegou ao estado-limite da indagação sobre o que possa haver de mais profundo em nossa mente, sobrevindo o silêncio que sabemos ser sempre provisório num mundo onde prevalecem mais as perguntas do que as respostas.


As confissões feitas por Bobbio em seu testamento, lido em sua câmara ardente, surpreenderam a todos, sempre tido que fora por heterodoxo conformado com os limites dos poderes da razão.


Não será demais reproduzir aqui a sua atormentada última declaração sobre o sentido de sua vida: "Creio de nunca ter-me afastado da religião dos pais, mas sim da igreja em si. Dela já me afastei há tanto tempo para voltar-me atrás repentinamente (di soppiato). Não me considero nem ateu nem agnóstico. Como homem de razão, e não de fé, sei de ter-me imerso no mistério, que a razão não é capaz de penetrar até o fundo, e que as várias religiões interpretam de vários modos."


Todavia, se bem analisarmos a questão aqui tratada veremos que a religiosidade não é assunto de razão, mas de sentimento, não dizendo respeito ao tempo empírico que vivemos, mas ao tempo transcendental no qual podemos apenas vislumbrar algo. Albert Einstein se limita a dizer que "algo há atrás da matéria". Por isso, a razão não constitui instância de valoração do que se situa no mais profundo de nossa sensibilidade.


Por outro lado, colocado no plano relativo do que é humano, o cientista contrapõe indevidamente à teoria da evolução, que ele descobre graças a seus métodos e processos de conhecimento positivo, a criação do cosmo por Deus: está, em suma, subordinando a criação divina ao conceito humano de temporalidade, que não lhe é aplicável. Essas categorias não são as de Deus, não nos sendo possível sequer falar em "ato" ou criação divina em um ou em bilhões de anos. O que não merece guarida é, por conseguinte, transferir para Deus o que sabemos enquanto homens.


A posição do homem religioso é a do mistério, e não a do saber como tal, falando e afirmando algo o cientista, como se ele fosse Deus, no instante em que lhe atribui ou não um poder em conflito com suas convicções. Se, como declara Bobbio, "o grande contraste não é entre a fé e a razão filosófica, mas sim entre a fé e a razão científica", não se compreende que se esteja subordinando a esta algo a que somente podemos aludir em termos humanos, isto é, fora e além das relações cognitivas.


Como se vê, o credo quia absurdum est (creio porque é absurdo) significa, a bem ver, que creio por ser absurdo não crer. É no plano do absurdo, em última análise, que se situa a fé, o ato de religiosidade.


O que está errado, pois, é a colocação do problema da fé no domínio do conhecimento, quando ele tem algum sentido tão-somente fora de qualquer relação de conhecimento.


Nessa ordem de idéias, em meu livro Verdade e Conjetura, eu digo que, se se persiste em falar em "forma de conhecimento", ao se tratar de uma questão transcendente, esta deve ser situada no plano do als ob, do "como ser". Ou seja, aquilo que nós afirmamos "como se fosse possível fazê-lo" é uma conjetura, como o disse pela primeira vez Nicolau de Cusa, oferecendo as primeiras bases do pensamento conjetural.


Vale a pena salientar que, até mesmo no plano do conhecimento científico positivo, a Gnoseologia contemporânea tem admitido a necessidade de se recorrer a conjeturas, as metáforas e meias-verdades, problema este que tem merecido a atenção dos autores da Lógica Paraconsistente, tal como o faz exemplarmente Newton Carneiro Afonso da Costa, chegando a resultados cognitivos transparentes.


Não há, por conseguinte, exagero quando se afirma que, em nossos dias, se alargam os horizontes da razão, não mais presa a limites intransponíveis, como os que foram, por exemplo, fixados por Kant.


 


O Estado de S. Paulo (São Paulo) 18/12/2004

O Estado de S. Paulo (São Paulo), 18/12/2004